Dimitri acordou por causa de algum barulho que vinha da rua. Antes de ficar incomodado com o barulho ele achou estranho. Afinal, até onde ele pode se lembrar, perto de onde ele vivia não tinha rua nenhuma. Não que isso fosse algo inédito. Dimitri dormia tanto que não era raro acordar, olhar pela janela e ver tudo diferente. Mas dessa vez até a janela tinha desaparecido e nada daquele lugar lembrava seu habitual local de descanso. Algo lhe dizia que dessa vez ele tinha dormido demais.
Anos, décadas e até mesmo séculos se passavam enquanto Dimitri dormia. Isso acontecia, pelo menos na maioria das vezes, exclusivamente por causa do tédio provocado pela imortalidade. Dimitri era um vampiro e via pouquíssima graça em ser um vampiro. Nesse momento em especial ele estava vendo menos graça ainda já que acordar em um lugar estranho não estava nos planos quando ele foi dormir. Por sorte havia alguém que podia ajudar a esclarecer aquela situação.
— Mikhail! Onde está você, Mikhail?
Alguma coisa caiu no chão e quebrou. Passos apressados trouxeram à presença de Dimitri o seu mais fiel, e único, servo. Mikhail era uma colcha feita dos retalhos de pelo menos sete mortos-vivos. Um dos braços era muito pequeno, outro muito grande, o rosto era remendado em três partes e as duas metades do tronco não eram exatamente iguais. Pelo menos as pernas eram do mesmo tamanho. Mikhail agradecia todo dia por, pelo menos, não mancar.
— Mestre! Que alegria em vê-lo! — Disse Mikhail com uma alegria sincera e um sorriso assimétrico nos lábios.
— Exijo saber que barulho infernal é esse lá fora — disse o vampiro autoritário.
— Obras na rua de trás, mestre.
— Que rua? Atrás de onde, Mikhail? Não lembro de ter rua de trás no nosso castelo. Na verdade também não lembro de ter essa cripta no nosso castelo.
— Deve ser porque não existe mais castelo, mestre.
— O que disse?
— Nosso castelo foi invadido por conquistadores sanguinários, mestre. Precisei fugir com seu esquife. Suas esposas ajudaram a conseguir a ajuda dos clãs, mas o máximo que nos deram foi essa cripta para escondê-lo enquanto não acordasse.
— Onde estão minhas esposas?
— Guilhermina foi morta por caçadores, Esmeralda se tornou estilista e Lucrécia entrou para indústria que chamam de “farmacêutica”. Ela faz remédios que protegem do sol.
— Quanto tempo passei dormindo?
— Quatrocentos anos, mestre.
— QUATROCENTOS? — gritou Dimitri incrédulo — Como diabos passei tanto tempo dormindo?
— É provável que seja pelo fato dessa cripta estar no porão de uma igreja.
— IGREJA? Quem foi o mentecapto que trouxe meu esquife para uma IGREJA?
— Boa parte dos membros mais antigos dos clãs estão dormindo em criptas de igrejas. O mestre deve ter acordado por causa do roubo da semana passada. Levaram tudo que ainda tinha algum poder dos dias antigos.
— Não creio. Que padres são esses que não produzem mais armas contra as criaturas das trevas?
— Os padres mal conseguem manter as pessoas acreditando em Deus. Em histórias de vampiro é que ninguém acredita mesmo.
— Faz sentido… — Dimitri passou um tempo pensando e não demorou muito para as necessidades do corpo falarem alto — Tenho fome, Mikhail, traga-me sangue.
— Creio que não temos, mestre.
— Então preciso sair para caçar.
— Não pode, mestre.
— Como assim não posso?
— Precisamos entrar em contato com o sindicato antes para regulamentar suas atividades como vampiro.
— Como é?
— Recebemos uma carta todos os anos falando sobre as novas leis que regulamentam a atividade vampírica no país. Caçar sem habilitação ou sem seguir os procedimentos é considerado crime grave e pode dar cadeia.
— E onde está esse tal sindicato?
— Acho que tenho um endereço deles aqui em algum lugar… Pronto, encontrei — Mikhail entregou a última correspondência do sindicato na mão de seu mestre.
— O horário de atendimento é no meio do dia. Eles querem que eu frite no Sol?
— Lucrécia mandou algo para protegê-lo do Sol em ocasiões assim, chamam de “protetor solar”.
— Então traga-me esse protetor e prepare a carruagem.
— Não temos carruagem, mestre.
— E como nos locomoveremos? Me recuso a andar junto à plebe.
— O trânsito costuma ser bem ruim nas segundas. Se formos num carro de aluguel será muito demorado.
— Então que demore — respondeu Dimitri indignado. — Vá cuidar disso e me dê esse… Protetor solar.
Mikhail obedeceu. A pouca saudade que tinha do seu mestre agora lhe parecia uma ideia absurda. Servi-lo seria tão ruim agora quanto sempre foi no passado… Pelo menos vê-lo viver nessa época seria divertido.