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Contos de Segunda #95 – Lágrimas Pretas

— O que tem lá fora, Mãe-Adria?

A pergunta não pegou Adria de surpresa. Nada pegava Adria de surpresa. Ela era uma sentinela. A mais antiga delas. A maior de todas. A quantidade dos desenhos com padrões intrincados que cobriam a maior parte da sua pele cor de barro denunciavam sua idade. Antiga, mas eternamente jovem, como todas as outras que moravam ali. Ela guardava as portas da Casa do Pai, uma tarefa perigosa e solitária… Pelo menos era, antes de Penélope ter idade para andar pela Casa com as próprias pernas. Nenhuma criança chegava perto da porta, os jardins eram muito mais coloridos e cheios de vida do que a paisagem que Adria observava, dia após dia, ao longo dos séculos. As silhuetas distorcidas das árvores mortas eram as únicas coisas que se erguiam acima da névoa. Depois de um breve silêncio, veio a resposta:

— Morte. Desolação. Os horrores da terra. Ruínas de tempos passados. Para nós há desespero, dor e o medo da morte.

Não havia emoção alguma nas palavras de Mãe-Adria, nunca havia. Penélope hesitou em continuar a conversa. Seus pensamentos se encheram do medo das coisas que povoavam as histórias que tiravam seu sono… Mas Mãe-Adria estava ali. Ela não precisava ser corajosa, a coragem da sentinela era suficiente para as duas.

— A senhora já saiu algum dia da Casa do Pai?

— Todas aquelas nascidas para a guerra já saíram. A terra desolada é nossa prova. Onde nossas habilidades são testadas. Nem todas retornaram.

— Eu sou nascida para a guerra, Mãe-Adria?

— Isso será sabido a seu tempo, criança. Quando tiveres tamanho para manejar uma arma e vestir uma armadura, a tua chama te mostrará. Quem é nascido para a guerra é chamado para fora. Não conseguimos resistir. Aprendemos a lutar para conseguir retornar.

— Temos tudo que precisamos aqui dentro, por que alguém teria vontade de sair?

— Lembras das histórias de Mãe-Kala? Sobre nossa vida antes de chegarmos na Casa do Pai?

— As primeiras de nós moravam lá fora. Elas viviam espalhadas pelo mundo antes dos horrores tomarem conta da terra.. Os jardins se estendiam por léguas sem fim e as mulheres pintadas eram livres… Mas os horrores chegaram e consumiram tudo. A Casa do Pai era o último lugar seguro. As últimas de nós chegaram aqui e conseguiram refúgio.

— Quase fomos exterminadas. Éramos pouco mais de duas dúzias quando chegamos à Casa do Pai. Ele nos ensinou a criar outras mulheres pintadas. Nos tornamos Mãe. Sobrevivemos… Mas a vida antiga nos chama, a todas nós. Nem todas conseguem ouvir, mas as que ouvem não conseguem resistir.

Penélope encarou pensativa a face da desolação que se erguia para além da porta. Seus olhos se perderam nas sombras imóveis das árvores há muito mortas. Imaginou como seria andar por lá. Tentou adivinhar a temperatura da névoa e o som de seus passos nas pedrinhas sobre a terra seca.

E viu os olhos.

Pensou estar sonhando acordada. Sacudiu levemente a cabeça. Os olhos eram luminosos. Estavam longe, ela tinha certeza, mas pareciam tão perto. Duas fendas por onde uma luz verde escapava. Mãe-Adria ajoelhou ao seu lado e passou o braço sobre seus ombros.

Foi quando ela percebeu que estava tremendo.

— Volte para dentro, criança — disse a sentinela em um sussurro. — Preciso trabalhar.

A noite não tardou a chegar. Após a refeição, muitas se juntaram ao redor das fogueiras para conversar e trocar histórias. A fogueira de Mãe-Kala era a preferida das mais novas, principalmente Penélope, mas os olhos na névoa ocupavam seus pensamentos, hoje não havia ânimo para ouvir sobre o passado. Decidiu dormir mais cedo, mas o medo dos próprios sonhos afastou o sono por algumas horas… Sem lembrança de ter adormecido, a menina foi acordada por vozes nervosas e pés ligeiros. Saindo do quarto encontrou apenas rostos confusos de outras meninas, igualmente acordadas pela agitação nos corredores.

— Volte para cama, criança — disse Lissa, uma jovem guerreira que dormia no quarto ao lado.

— Algo aconteceu, irmã?

— Ainda não sei, mas parece sério. Volte para dentro e não saia.

Lissa não ficou para ouvir uma resposta, outras guerreiras a levaram. Tudo estava muito agitado e provavelmente ficaria assim por mais algum tempo… Tempo suficiente. A janela do quarto de Penélope dava para um dos jardins, o jardim ao lado do templo, onde as mulheres mais velhas se reuniam quando algo sério acontecia. Todas as Mãe moravam lá e nove delas formavam o conselho. Provavelmente as portas do templo estavam sendo vigiadas, mas isso nunca foi problema.

As mulheres pintadas que serviam como sacerdotisas conduziam seus rituais de purificação em uma fonte do jardim anexo ao templo. Não era raro ver as crianças passando pela cerca viva para entrar no jardim, raro era ver uma criança usar o jardim para entrar no templo. Do jardim para a câmara de preparação dos rituais e da câmara para o átrio, era onde todas estavam. O átrio era ricamente adornado com flores que se derramavam dos jarros como uma cascata colorida, pelo menos durante o dia. À noite, as flores perdiam suas cores, emitiam o brilho da lua. As mulheres pintadas, com suas peles avermelhadas, pareciam cinzentas, frias, sob a luz das flores. Um silêncio mortal recaía sobre o átrio.

Todas as Mãe estavam reunidas junto com as sacerdotisas e algumas das guerreiras mais graduadas.. Formavam um semicírculo diante das nove cadeiras cor de barro do conselho. Penélope se esgueirou por trás de uma cortina e se misturou com os ramos que desciam por um dos jarros na esperança do assunto tratado ser sério o suficiente para manter as adultas distraídas demais para notá-la. .

Em pé, de frente para o conselho, estava Mãe-Adria… Ela não deveria estar… Deveria estar sentada, junto das outras oito, mas era Mãe-Hera quem ocupava sua cadeira..

— O que faremos, irmãs? — Questionou Mãe-Almira. Ela olhava para as outras Mãe sentadas ao seu lado.

— O que sempre fizemos — respondeu Mãe-Adria. — Meu destino não pode ser diferente.

— Ela está certa — disse Mãe-Kala com a voz embargada. — Ela deve ir, não podemos deixar que se espalhe.

— Mas Adria é Mãe, não deveria ter esse fim — retrucou Mãe-Hera.

— Sou barro, sangue e fogo como todas as outras, irmã — respondeu Mãe-Adria. — Vivi e matei mais do que qualquer guerreira. Minha hora é mais que chegada. Não há outro jeito.

— Não há outro jeito — reforçou Mãe-Kala.

— Esse tem sido nosso fim desde antes dos horrores consumirem a terra —  lembrou Mãe-Gae. — Lágrimas pretas escorrem dos olhos de Adria, ela se quebrou.

Penélope pensou sentir frio. Seu corpo tremia. As palavras de Mãe-Gae não tinham significado para ela, mas eram palavras ruins. Muito ruins.

— Não fomos feitas para morrer — lamentou Mãe-Hera.

— E por isso morremos — replicou Mãe-Adria. — Olhe para mim, irmã.

Penélope olhou… E viu. Algo parecido com tinta escorria dos olhos de Mãe-Adria. Gotas grossas desciam pela face, mas não pingavam no chão.

— Diga que tenho salvação. Conte a todas aqui presentes que há uma forma, até agora desconhecida, de mudar meu destino.

— Poupe-me de teus deboches, Adria — esbravejou Mãe-Hera. — Poupem-me dessa tradição arcaica e desses rituais derrotistas. Por anos sem conta desistimos de nossas irmãs. Por anos sem conta nossas irmãs aceitaram um destino que não precisava ser delas.

— Quem aqui é antiga o suficiente para lembrar? — Interrompeu Mãe-Moira. — Kala, Almira, talvez Adria? Quem é antiga o suficiente para lembrar da primeira de nós que se quebrou? — Dizia ela enquanto examinava o rosto das demais. — Quem pode lembrar da primeira mulher pintada que chorou lágrimas pretas? Quem dentre as presentes viveu o pânico e encarou a insanidade? Adria não pode mais permanecer entre nós. Não há decisão a ser tomada.

Penélope estava paralisada. Seu corpo tremia. As lágrimas rolavam dos olhos sem que ela notasse. A reunião prosseguiu por mais algum tempo, mas nada do que foi dito depois fez sentido algum para a menina. Mãe-Adria estava quebrada, seja lá o que estar quebrada pudesse ser. Ela precisava sair da Casa do Pai… Voltar para fora… Lá fora só havia desespero, dor, o medo da morte…  E os olhos na névoa.

A escuridão tomou conta dos olhos da menina. Tudo desapareceu.

— Acorde, criança. Se souberem que estavas aqui durante a reunião passarás o resto da eternidade de castigo.

Penélope ficou desnorteada por alguns instantes.  Ela estava sentada, recostada sobre em uma parede, envolvida pelos ramos que desciam de um jarro. Não lembrava de ter adormecido, talvez tenha desmaiado.

— Mãe-Adria? Eu… Onde… Mãe-Adria! — Gritou Penélope se jogou nos braços da sentinela e a abraçou com força. — Eu… Ontem… Não vá embora!

— Preciso ir, criança. Enquanto ainda posso. Um destino ainda mais terrível me aguarda se permanecer na Casa.

— Mas quem vai guardar a porta?

— Nossas guerreiras são habilidosas, não há motivos para temer.

— Elas não são antigas, não são fortes… Não como a senhora.

— Olhe para mim, Penélope.

A menina soltou o abraço e olhou para Mãe-Adria. Sua pele cor de barro estava pálida. Seu rosto tinha pequenas rachaduras e as lágrimas pretas corriam sobre ele.

— Meu tempo acabou. Minha chama está se apagando. Em pouco tempo não poderei guardar a porta ou treinar as novas guerreiras. Devo ir para o lugar de descanso enquanto ainda posso.

— Fica muito longe?

— Não para quem conhece o caminho.

— A senhora vai sozinha?

— Preciso.

— É perigoso?

— Para mim? Não. Agora chega de perguntas. O sol está nascendo. Vá antes que te descubram.

A menina obedeceu sem questionar. Estava triste demais para ser castigada. A luz da aurora começava a romper o véu da noite. Os jardins ainda estavam escuros, frios e vazios. Sem ser descoberta, Penélope chegou até a janela do quarto, pulou para dentro e escorregou por baixo dos lençóis frios. Lembrou de Mãe-Adria, de como nada parecia abalá-la. Desejou poder se despedir de forma mais adequada. Perdeu-se em pensamentos e adormeceu.

 

***

Os olhos de Adria corriam pela paisagem. As portas da Casa do Pai estavam abertas atrás dela. Ao seu lado estavam Moira, Kala e Almira.

— Quando foi a última vez em que estivemos juntas diante destas portas, irmãs? — Perguntou Almira.

— Todas juntas? Só no dia em que chegamos na Casa — relembrou Moira. — E nenhuma vez depois dessa.

— Seiscentos e trinta e sete anos — acrescentou Kala. — Chegamos aqui juntas faz seiscentos e trinta e sete anos. Das primeiras a nascer, fomos as únicas a chegar.

— Mulher pintada. Moldada pelos deuses… — começou Moira.

— … Carne de barro e sangue, que o tempo desenha, adorna, nunca desgasta… — respondeu Kala.

— Alma de fogo e vontade. Chama eterna, vida sem morte — completou Almira.

— Vida que morte não leva. Vida que a si mesma se encerra — terminou Adria.

— Não fomos feitas para morrer — lembrou Almira.

— E por isso morremos — replicou Moira.

— Como isso  pôde acontecer, Adria? — Questionou Kala. — Não há nenhuma outra dentre nós que enfrentou a morte tantas vezes. Que encarou a face dos horrores tantas vezes por tanto tempo.

— Vi coisas na névoa, irmã. Coisas que não deveriam estar ali.

— Passaste por tanto. Viste o mundo morrer e encaraste a certeza da extinção — relembrou Almira.

— E ainda assim estou aqui. A carne trincada, vertendo lágrimas pretas pela face — rebateu Adria. — Não te julgues menor só porque paraste de lutar antes de mim, irmã. Tudo que vi de pior não vi sozinha.

— Almira amoleceu com os anos, irmã — provocou Moira

— Todas nós, Moira — brincou Kala. — Quando foi a última vez em que seguraste uma lança ou uma espada?

— Todas nós… Menos Adria — disse Almira.

Silêncio.

Nunca era fácil ver uma mulher pintada partir da Casa do Pai. Nem todas suportavam presenciar esse momento. Adria nunca teve essa escolha. Ela guardava a porta. Sempre. Ao longo dos séculos viu todas aquelas que foram quebradas partirem na direção do lugar de descanso.

— Quantas de nós já se foram, Kala? — Questionou Adria.

— Cinquenta e três irmãs… Desde que chegamos aqui. A última partiu faz quase duzentos anos.

— Tempo suficiente para esquecermos da sensação — completou Moira.

— Eu vi todas — começou Adria. — Todas as que partiram. Para mim foram tantas. Incontáveis. Senti por cada uma delas. Sinto ainda mais agora.

— Não teria contado se não cuidasse dos registros — tremeu Kala. — Aquelas que partiram sempre serão honradas em nossas histórias… Mas nenhuma como Adria.

— A Campeã de Barro — disse Almira.

— Guerreira Mais Antiga — lembrou Moira.

— Mestra dos Exércitos — completou Kala.

— Uma sentinela das portas — rebateu Adria. — Como aquelas que virão depois de mim e as que virão depois delas. Os títulos que tive são títulos de um mundo morto. Nada do que fiz antes foi mais importante do que fiz enquanto guardava estas portas.

— O sol se levantou… Está na hora — disse Almira com pesar. — Tragam as armas — ordenou.

Duas guerreiras vieram. Ataram um escudo às costas de Adria. Uma espada e uma faca foram presas ao seu cinto. Uma lança foi colocada em sua mão. Depois de entregar as armas se retiraram

— Te lembras do caminho? — Questionou Moira. — Se te apressares chegarás lá ao anoitecer.

— Assim que me for… Chamem as cinco que escolhi para guardarem a porta… Não sei o que pode acontecer lá fora… Se eu tentar voltar… Elas sabem o que fazer… Adeus, minhas irmãs.

 

***

A névoa era fria. Mesmo ao meio-dia, mesmo durante o verão. A névoa era fria. Adria não sentiu frio. Não sentiu a umidade da névoa ou o calafrio de sempre ao caminhar para dentro dela. “Uma distração a menos”, pensou ela. Passos tranquilos e largos conduziam a sentinela à trilha que deveria tomar. Seu caminhar leve era marcado pelo som dos pés na terra morta. Quase tudo parecia diferente. Menos hostil, menos inóspito. Exceto por uma coisa.

Silêncio.

Nada estava vivo ali. Tudo fora consumido pelos horrores da terra nos séculos passados desde o seu surgimento. Nada respirava, comia ou cantava naquele lugar. Nem em lugar algum.

O mundo exalava morte.

Adria exalava morte.

Chorava morte.

Estava morta e, a cada passo, morria um pouco mais.

Adria testemunhou a morte de todos os tipos de seres. Muitas dessas mortes foram causadas pelo fio de sua espada, pela ponta de sua lança ou pela força de suas mãos. Grandes, pequenos, feras, príncipes, servos e santos. Mulheres pintadas ou homens comuns. Todos pereceram aos olhos de Adria, mas a morte lhe era tão alienígena quanto para suas irmãs. A morte foi feita para os outros. As mulheres pintadas não foram feitas para morrer… E por isso morriam.

Adria se deixou fazer algo que era vedado a qualquer sentinela. Deixou-se distrair pelos pensamentos. Para seres tão antigos quanto ela, lembrar era quase como sair em uma viagem. Algumas memórias estavam longe demais, aguardavam preguiçosas por uma visita que há muito não ocorria. Mas visitar as memórias era algo que Adria deixava para Kala, o presente era uma ocupa…

Passos.

Passos apressados vindo logo atrás.

Rápida como uma criatura leve, mas desajeitada como uma criatura grande. Uma faca cravada no meio de um dos olhos seria suficiente para frear a investida. Sacou rapidamente a faca do cinto, esperou a criatura chegar mais perto, preparou o arremesso e se virou pronta para atirar a lâmina no olho do que quer que fosse… Mas ela não estava pronta para o que viu.

— Que fazes aqui, Penélope?

— Vim encontrar-me contigo, Mãe-Adria.

Adria passou os olhos pelos arredores antes de voltá-los para a menina.

— Percebes o absurdo que acabas de dizer? A Casa do Pai é o único lugar seguro que conhecemos. Vieste de lá, sozinha, para te encontrares comigo?

— Quando a senhora fala desse jeito parece muito pior do que realmente é.

— Não posso te proteger, criança. Não do jeito que estou. Estou indo para um lugar do qual não posso voltar. Mesmo que sobrevivas até lá, não posso garantir tua segurança no caminho de volta.

— Ainda falta muito?

— Mais da metade do caminho.

— É perigoso?

— Sim, muito.

— A senhora não pode me proteger?

— Não.

— Por quê?

— Porque tenho medo, Penélope. Tenho medo da morte. Por isso estou morrendo.

A menina não respondeu.

Adria voltou seus olhos para o caminho que seguia. Pensou no quanto ainda faltava para chegar ao lugar de descanso. Lembrou dos seres à espreita na trilha e daquilo que viu na névoa. Voltar para a Casa custaria o resto do dia e o tempo corria veloz, quanto mais rápido ela seguisse, mais fácil seria chegar ao destino.  Soltou a faca do cinto, rasgou das suas roupas uma fita e prendeu a arma na cintura de Penélope.

— Eu sei que não sabes manejar uma faca da forma devida, mas não posso te deixar desarmada.

Com o rosto iluminado, Penélope sacou a arma da bainha. A lâmina parecia bem mais longa nas mãos da menina. Era leve e bastava olhar para perceber o quão afiada ela era.

— Se alguma coisa vier para cima de ti, não ataque. Firme os pés no chão, segure a faca com as duas mãos e deixe que o peso da coisa faça o resto. Se algo conseguir te morder é só cravar a faca no olho, deve te dar tempo de fugir ou de pensar em algo. Fui clara?

Para Penélope, manejar armas sempre pareceu algo divertido. Não parecia mais.

— Se conseguir acertar algum golpe — continuou Adria —  não deixe o sangue secar na lâmina, tem algo no sangue dos horrores que deixa as armas cegas. Se nada disso acontecer, deixe a faca dentro da bainha. Agora mostra como seguras a faca.

Penélope tentou se lembrar das vezes em que assistiu ao treinamento das guerreiras. Nunca viu nenhuma delas usando uma faca, mas Mãe-Adria pedira para segurar as facas com as duas mãos… Como se faz com uma espada.

A menina imitou a postura das guerreiras o melhor que pôde.

— Afaste um pouco os pés… Não segure a faca tão perto do corpo… Olhe sempre para frente, não esqueça.

Penélope confirmou com a cabeça tentando disfarçar a empolgação.

— Agora vamos. Não saia das minhas vistas e mantenha o passo. Ainda temos um longo caminho pela frente.

Uma sombra colossal se erguia ao longe. Depois dos bosques mortos estava uma montanha outrora tida como sagrada. Uma trilha cuidadosamente marcada conduzia até uma abertura a algumas centenas de metros acima do chão. Lá ficava o lugar de descanso das mulheres pintadas.

— A senhora está quebrada, Mãe-Adria? — Disse Penélope se virando para a sentinela.

— Sim… Mantenha os olhos no caminho, o terreno está começando a ficar pedregoso.

— Como uma pessoa quebra?

— Não é qualquer pessoa, só as mulheres pintadas… O que sabes sobre a morte, criança?

— Que ela não tem parte conosco. Coisas podem nos matar, mas não morremos de velhice ou doença. Não fomos feitas para morrer.

— E por isso morremos.

— A senhora falou isso para as outras Mãe… O que quer dizer?

— Todos os seres mortais que viveram antes da chegada dos horrores possuíam apenas uma certeza, de que sua vida teria fim em algum momento… Não te distraias, ande mais rápido.

A menina endireitou a postura e acelerou o passo.

— Para as mulheres pintadas a morte é algo que chega para os outros. Sabemos que podemos morrer, mas dificilmente acreditamos que morreremos de fato, mesmo diante do perigo mortal… Porém, para algumas, a morte vira uma certeza… Tememos. Temos medo porque não a conhecemos, como disseste, ela não tem parte conosco. E quando tememos… Quebramos.

— E choramos lágrimas pretas.

— E choramos lágrimas pretas. Uma mulher pintada que se quebra vai aos poucos perdendo sua sanidade. Primeiro vemos as coisas como elas não são, tudo se torna uma ameaça. Depois vemos coisas que não existem, dias e dias de delírios sem fim. Por último vemos como inimigos qualquer um que estiver na nossa frente, uma fúria assassina que só a morte pode aplacar… Por isso criamos o lugar de descanso. Lá podemos encontrar o fim em paz.

Penélope não prosseguiu com a conversa. Talvez a menina sentisse o mesmo que Adria…

Algo se aproximava.

Não havia som que denunciasse a presença de coisa alguma… Mas estava lá. O que quer que fosse, estava lá. A sentinela apurou os ouvidos.

Asas.

Um distante bater de asas. Asas pesadas. Um horror voador vindo por trás.

Mais um bater de asas.

Adria se virou e viu a criatura iniciando seu mergulho.

— Penélope, corra.

A menina olhou para trás, mas só conseguiu ver sua guardiã correndo em sua direção. “Apenas alguns metros”, pensou Adria, “só mais um pouco… Um… Dois… Três!”

Ela se jogou sobre a menina caindo abraçada com ela no chão. Com um golpe as garras da criatura arrancaram o escudo das costas de Adria. Com a lança em punho, a sentinela se pôs de pé e preparou o arremesso. O monstro se afastou manobrando em círculo e ganhando altitude, preparando o próximo mergulho. As garras pendiam nos braços raquíticos da fera, saliva escorria pelos dentes, os olhos verdes brilhantes iluminavam a face animalesca que destoava do resto corpo, coberto de penas, assim como as asas. Quase como se aquele horror vestisse o corpo de um pássaro gigante.

“Vou morrer”, pensou Adria.

Sacudiu a cabeça como se quisesse jogar fora aquele pensamento.

A fera não parecia tão ágil. Grande demais para uma manobra de última hora. Qualquer guerreira com metade da experiência de Adria derrubaria a criatura de olhos vendados.

“Vou errar o arremesso e morrer”

Sem a necessidade de permanecer oculto, o monstro desceu em seu mergulho soltando um grito feral que encheu Adria de terror. Suas pernas ficaram bambas. A postura de arremesso cedeu. Os dedos frouxos por pouco não soltaram o cabo da lança. A respiração acelerou. O coração martelava no peito. As lágrimas corriam, ainda maiores, ainda mais rápidas.

— AAAAAHHHHHH.

O grito apavorado da voz infantil trouxe Adria de volta. Os dedos se firmaram ao redor do cabo da lança. Não havia tempo para preparar um arremesso, mas era uma boa oportunidade para colocar em prática os conselhos dados a Penélope. Segurando a lança com as duas mãos, Adria aguardou o golpe do adversário que descia em diagonal na direção dela  e de sua protegida. Bastava aguardar até o momento certo.

“Vou morrer… Não solte essa lança nem morta”.

No último instante, Adria inclinou o corpo para trás, apoiando o cabo da lança no chão. Com a arma exatamente no ângulo de descida da criatura. Perto demais para sequer entender a armadilha em que caíra, o horror mergulhou sobre a lança.  A ponta entrou pela boca e saiu pela nuca da fera que desabou pesada sobre a sentinela.

Penélope se levantou do chão. Bateu a poeira das roupas enquanto procurava por Adria. Mas tudo que viu foi o corpo cheio de penas da criatura tombada.

— Mãe-Adria? MÃE-ADRIA! — Gritou ela correndo na direção do monstro.

A carcaça se moveu de leve quando a guerreira saiu debaixo dela. Tudo que o horror voador conseguiu fazer foram alguns cortes nos braços de Adria e quebrar o cabo da lança ao meio.

— A senhora conseguiu — disse a menina cheia de empolgação.

— Foi por pouco.

— Aquilo era…

— Um horror… Um horror voador, faz tempo que não vejo um.

— Todos os horrores são feios assim?

— Só os mais bonitos… — Adria retirou a lança do horror abatido. — Me ajude a encontrar o escudo.

Penélope se apressou para procurar o escudo, mas a neblina tornou a tarefa impossível. Logo o desânimo se apossou da menina. O ataque do monstro provavelmente o arremessara para muito longe.

Enquanto sua companheira buscava sem sucesso pelo escudo, Adria parou para observar os arredores. Assim como antes, nada fazia som algum… Mas havia algo.

Olhos.

Dois olhos verdes. Dois pontos luminosos ao longe. Menores que os de um horror normal. Exatamente na altura dos olhos de Adria.

Elas não podiam permanecer ali.

— Encontraste o escudo? — Falou a sentinela tentando controlar a respiração que voltava a acelerar.

— Não — respondeu a menina emburrada.

— Temos que continuar. Fizemos muito barulho, não sabemos o que pode ter ouvido — ela sabia.

— Mas e o escudo?

— Teremos que fazer o resto do caminho sem ele. Vamos, criança, precisamos chegar à montanha… E Rápido.

O silêncio tomou conta do resto do caminho até a trilha. A neblina ficava mais e mais densa quanto mais as duas se aproximavam da montanha. Conforme a visibilidade piorava, aumentavam as marcações no caminho. Pequenas pedras com um brilho verde, perfeitamente visíveis dentro da névoa. Verdes, brilhantes, como os olhos dos horrores. Olhando compulsivamente por sobre seus ombros, Adria procurava por qualquer sinal de um par de luzes verdes em meio à neblina. As lágrimas pretas corriam rápidas e grossas pela face da guerreira. Os joelhos desejavam o chão, os pés pesavam como pedras, o ar entrava pesado nos pulmões…

— Chegamos? É aqui?

A voz de Penélope, mais uma vez, fez Adria voltar a si.

— Sim — respondeu depois de alguns segundos. — Só mais um pouco e estaremos no lugar de descanso

Um portal esculpido de pedra marcava o início da trilha. Um corredor sinuoso escavado na rocha, estreito demais para qualquer criatura maior do que uma mulher pintada passar… “Não é o suficiente”, pensou Adria. Mais uma vez seus olhos correram pelos arredores. Sob a densa neblina aos pés da montanha, apenas as marcações da trilha eram visíveis. As marcações da trilha… E dois olhos. Verdes, luminosos, erguidos acima do caminho e se aproximando devagar.

— Não podemos parar agora, criança.

— Não podemos — respondeu Penélope tomando Adria pela mão. — Venha, vou levá-la até lá.

A mão da guerreira estava fria. Penélope fingiu não perceber. A Mãe parecia cansada aos seus olhos, mas não precisava ser lembrada de como as coisas não estavam indo bem. Guardou para si a estranheza do toque, a aspereza da pele ressecada nos dedos cobertos de calos. O tempo se perdeu na subida. Os passos acelerados no início, se transformaram em um caminhar quase preguiçoso de quem queria que aquele momento durasse mais, durasse muito, durasse para sempre.

O véu da noite caiu pesado sobre a terra desolada. Centenas de metros acima da névoa, estavam Adria e Penélope. Dali era possível ver o céu estrelado, a névoa cobrindo o mundo como um manto de nuvens e, ao longe, as luzes alaranjadas das tochas e fogueiras acesas na Casa do Pai.

— Espero que não estejam muito preocupadas comigo.

— Não é a primeira vez que desapareces, Penélope. Só estariam preocupadas se soubessem o que estás fazendo.

— Vou passar o resto da eternidade de castigo, não é?

— No teu lugar me preocuparia menos com as coisas futuras. O presente é mais que o suficiente. O caminho terminou, mas a jornada ainda não. Olhe — apontou Adria para a face da montanha.

A entrada do lugar de descanso era uma fenda na rocha. Um número sem conta de inscrições em várias línguas emolduravam a passagem. Brilhando com a luz das estrelas.

— Milhares de anos atrás… Kala reuniu todas as sábias nesta montanha. Pintaram esta fenda e o salão depois dela com milhares de encantamentos. Para dar força ao ritual e não permitir que coisa alguma além de uma mulher pintada pudesse entrar.

Adria suspirou profundamente. Talvez a proteção mágica da caverna mantivesse… Aquilo do lado de fora.

— Venha. O passado é ainda mais bonito do lado de dentro.

E era.

As inscrições cobriam o piso, as paredes e o teto de um salão octogonal. Em cada canto havia a estátua de uma mulher pintada, igualmente coberta de inscrições. As letras iluminadas enchiam o lugar de uma luz cálida que não deixava sombra alguma se formar ali dentro.

— Quem são elas, Mãe-Adria?

— As primeiras a nascer. Ali está Moira, outrora famosa estrategista em batalha e perita em várias formas de combate, éramos rivais antes dos horrores consumirem a terra. Kala, outrora mestra de todas as sábias e a última guardiã do conhecimento antigo, a memória de todas nós. Almira e sua irmã gêmea, Alara, as primogênitas. Nunca fomos governadas por outras além delas. Nunca tomaram para si o domínio sobre nós, mas nenhuma mulher pintada negaria a autoridade delas. Deste lado temos Niva, a construtora, Mersa, a caçadora, e Iana, a juíza. Elas viviam entre os mortais, ensinando todos os tipos de ciência e ofício. E esta… Sou eu.

— A senhora foi uma das primeiras a nascer, Mãe-Adria?

— Sim. Mas fui a última das oito. Ao contrário das outras, fui a única a nascer criança. Cresci sob os cuidados delas. Fui muitas coisas de muitas formas. Andei livre e servi quando quis e precisei. Quando se teve uma vida como a minha… Não se pode reclamar na hora de partir.

Voltando os olhos para o centro da sala, Penélope viu uma mesa de pedra com uma lanterna sobre ela. Dentro da lanterna queimava uma chama prateada e ao redor da mesa círculos estavam desenhados no chão, grandes o suficiente para uma mulher adulta se sentar, um para cada canto da sala. Dentro dos círculos não havia inscrição alguma.

— Logo devo começar o ritual. Sob a luz das estrelas. Ao amanhecer terei partido.

— Para onde?

— Para onde a chama de todas nós queima eternamente. Livres desta carne de sangue e barro.

Adria caminhou até o centro da sala e, enquanto Penélope se perdia nas inscrições das paredes e nos detalhes das estátuas, contemplou a chama. Por um instante seu coração se encheu de paz. Finalmente aquela agonia teria fim… Mas e Penélope? Como a menina voltaria à Casa do Pai?

— AAAAAAAHHHHHH!

O grito de Penélope mais uma vez despertou Adria. Virando-se para a entrada, a sentinela viu. Seu coração disparou, as lágrimas pretas correram grossas e velozes como nunca.

Os olhos verdes.

Brilhantes.

Passos trôpegos. Um corpo corrompido. Reanimado por meios que Adria não podia nem imaginar.

O corpo de uma mulher pintada.

Uma mulher pintada convertida em horror.

Uma mulher que ela conhecia muito bem.

— Alba… és tu?

O rosto vazio de expressão fitava a guerreira. Os dedos se torciam em posições estranhas, a cabeça se debatia de forma tão errática quanto os espasmos que tomavam conta dos braços e pernas.

— Mãe-Adria… — implorou Penélope com a voz trêmula.

— Criança… Venha para cá.

A menina estava paralisada. Os olhos brilhantes, a pele cinzenta, as roupas sujas e esfarrapadas. Algo naquela coisa dizia que ela reagiria ao menor movimento.

— Vou criar uma abertura… Corra até aqui ao meu sinal.

— Certo!

— Preparada?

— Sim!

Adria preparou o que sobrara de sua lança

— Agora! — Disse ela ao fazer o arremesso.

O ataque acertou em cheio o ventre da mulher horror.

Penélope correu, mas sua fuga foi frustrada. Uma mão fria e áspera a puxou pelo pescoço. Seus pés saíram do chão e toda a sala passou veloz diante dos seus olhos quando seu corpo foi erguido e arremessado com força no chão de pedra, expulsando todo o ar do peito. Os dedos do horror voltaram a se fechar em volta do pescoço da menina, prendendo-a no chão. Os pulmões esvaziados e o aperto na garganta silenciaram o grito de dor de Penélope. Debruçada sobre sua presa, a criatura aproximou a face inexpressiva do rosto da criança, quase como se o desespero da pequena causasse curiosidade.

Adria sacou a espada.

“Se eu errar ela vai morrer”, pensou ela. “Ela vai morrer… Eu morrerei depois”

A boca do horror se abriu, muito maior do que a boca de qualquer mulher pintada deveria abrir. Dentes imensos e afiados se revelaram. Penélope se debatia, mas o monstro era forte demais. O fedor de morte invadia as narinas da menina com a proximidade crescente daqueles dentes inumanos. Com um estalo, o maxilar do monstro se deslocou para abrir ainda mais a boca, quase como se quisesse abocanhar a cabeça da pequena de uma vez. Penélope chutou e bateu, mas a coisa parecia não estava insensível aos seus golpes.

Sentiu a faca.

Sacudindo na cintura, a lâmina embainhada pedia para ser usada.

Reunindo suas últimas forças, Penélope sacou a arma e cravou no olho esquerdo da coisa. Uma fumaça verde saiu do olho perfurado, quase como uma cobra, subiu em espiral pelo braço da menina e entrou no seu olho esquerdo. Os dedos do monstro afrouxaram, Penélope caiu de joelhos com as mãos sobre o olho. O braço queimava, como se a carne estivesse sendo corroída. Mil agulhas pareciam penetrar no olho esquerdo.

Ela queria gritar, mas o ar ainda faltava.

Escuridão.

Silêncio.

***

Uma voz.

Uma voz cantando.

Distante. Em meio à escuridão do vazio. Parecia um sonho, talvez fosse. A canção ficava aos poucos mais alta e mais clara. A voz era familiar e ao mesmo tempo…

Os olhos de Penélope se abriram.

Ela estava novamente no lugar de descanso. Ao seu lado estava Mãe-Adria, sentada dentro de um dos círculos do chão, diante de sua própria estátua. Ela cantava um cântico que a menina não conhecia.

— Mãe-Adria?

— Pensei que não te veria mais acordada antes de partir.

— Essa música, é bonita.

— Faz parte do ritual, é uma canção de despedida.

— Aquela mulher…

— Alba.

— Quem era?

— A primeira guerreira que treinei na Casa do Pai. A primeira das guerreiras de lá que perdi para os horrores.

— O que aconteceu com ela?

— Não sei. Nunca vi algo parecido. Mortos convertidos em horrores. Ainda mais uma mulher pintada… Eu a vi na névoa. Perto da Casa… Ao vê-la… Ao reconhecê-la… Quebrei.

— Onde está o corpo dela?

— Se desfez. Os encantos do lugar desfizeram o corpo dela como farão com o meu. Sentes muita dor?

Penélope lembrou-se da fumaça verde e das queimaduras. Olhou para o braço esquerdo e viu as marcas em espiral. Não doíam, nem pareciam com qualquer queimadura que ela tenha visto antes.

— Não sinto dor.

— E o olho?

Imediatamente ela tampou o olho direito. A visão parecia um pouco diferente, como se as cores estivessem erradas, mas nada além disso.

— Consigo enxergar bem, mas as cores estão estranhas.

— Não te assustes quando olhares no espelho. Teu olho esquerdo está verde e  luminoso como o olho de um horror.

— O quê? Mas eu não vou…

— Virar uma coisa daquelas? Acho que não, mas é só um palpite. Conte tudo para Kala. Se houver algo a ser feito, ela saberá.

— Ainda falta muito para o sol nascer?

— Um pouco. Tempo suficiente para terminar o ritual.

— Depois disso…

— Eu partirei para eternidade e tu partirás para a Casa.

— Não sei se consigo sozinha.

— Não estarás sozinha. Leve a lanterna. É ela que realmente dá poder a este lugar. Os horrores não te incomodarão se estiveres com ela.

— É proibido tirar a lanterna daqui?

— Creio que sim, mas tua vida importa mais. Não te preocupes, alguém trará de volta.

— Obrigada, Mãe-Adria.

— Não fiz nada, criança. Te salvaste sozinha. A ti e a mim. A gratidão é toda minha.

A canção recomeçou. As inscrições no salão começaram a brilhar de forma alternada. Descrevendo padrões variados a chama da lanterna queimava ainda mais brilhante. Bruxelava furiosa como se atiçada pelo vento.

O sol se ergueu.

Sua luz penetrou pela brecha.

O cântico de Adria parou.

Sua postura relaxou. As inscrições voltaram a brilhar com a luz perene das estrelas. As chamas da lanterna se tornaram tranquilas mais uma vez. As lágrimas pretas não escorriam mais pelo rosto de Adria. Restara apenas a marca de sua passagem na face tranquila da sentinela. Depois de milhares de anos, a guerreira não precisaria mais lutar. Penélope se levantou para se sentar diante de Mãe-Adria. O rosto sem vida revelava uma beleza que nunca foi capturada. A face séria e determinada de sempre estava eternizada na estátua que ocupava um dos cantos da caverna. Os olhos, agora vazios, residiam em um rosto tranquilo junto com o sorriso discreto que não costumava aparecer. A menina fechou os olhos da mulher. Passou os dedos por onde as lágrimas correram. O líquido viscoso parecia com uma tinta. Tateando a pele de seu rosto, a menina encontrou a marca da passagem da fumaça verde.

Sobre ela passou as lágrimas pretas de Adria.

Tomou a lanterna.

E partiu.

 

Contos de Segunda #66

Jorge e Cristina estão com a história cada vez mais enrolada. Depois dos eventos relatados no Contos de Segunda #27 (Parte 01 e Parte 02) e das aventuras do dia dos namorados no Contos de Segunda #46, eles voltam pra continuar o que começou lá no Contos de Segunda #61.

  Jorge levantou preguiçoso naquela manhã de segunda-feira. Era o último dia do aviso prévio e a disposição dele estava do tamanho de um micróbio. Mais ou menos um mês tinha se passado desde que o Ministério Público convocou os aprovados no seu último concurso. Jorge estava entre os aprovados. Imediatamente ele pediu demissão e iniciou o aviso prévio. Apesar de só assumir o cargo no início do ano, Jorge resolveu sair do emprego no início de dezembro e tirar uns dias de folga. Desde então o trabalho virou o inferno.

    Desde cedo o chat do pessoal do jurídico estava explodindo de mensagens. Aparentemente todo mundo estava empolgado com a despedida de Jorge.

    “Mas isso tudo quem vai pagar é Jorge. Ele vai virar funcionário público, nada mais justo do que pagar o almoço”, disse Oscar em certo ponto da conversa.

    “Acho justo”, concordou Paulo César.

    “Nem comecem com essa história”, interrompeu Jorge.

    “Qual é, Jorge? Último dia, tu vai receber uma grana boa de rescisão, vai passar o resto de dezembro de folga e ainda não quer pagar o almoço?”, argumentou Rômulo.

    “Metade do escritório disse que quer almoçar comigo hoje. Tem gente que fala disso todo dia. Se eu pagar o almoço de todo mundo vou falir”, rebateu Jorge.

    “Relaxa, Jorge. A gente consegue driblar a galera no almoço e faz uma coisinha só com a nossa galera”, disse Silveira.

    “Se ficar só com a gente eu pago o almoço. E depois do expediente?”, lembrou Jorge.

    “O bar de um amigo meu abre dia de segunda e fica aqui perto. A gente passa o rádio pro pessoal do escritório e quem quiser aparece lá. Roberta até falou que ia levar as amigas dela pra socializar com a gente”, respondeu Rômulo.

    “Nem comece com essa conversa, Rômulo. Se alguma amiga minha aparecer não vai ser porque eu levei”, rebateu Roberta.

    “Tu só fala isso porque Jorge é tretado com aquelas duas lá. É até melhor que Jorge vá embora, pelo menos tuas amigas vão aparecer quando a gente marcar alguma coisa”, completou Oscar.

    “E eu aqui pensando o que seria de vocês sem mim”, respondeu Jorge antes de bloquear a tela do celular.

    Apesar do histórico, Jorge não entrava em atrito com Cristina há um bom tempo. Principalmente por causa da correria que o último mês se tornou. A empresa estava sendo processada, Jorge precisou dobrar os esforços para trabalhar junto com os colegas na defesa e dar um jeito de eliminar as pendências antes do final do aviso prévio. Depois de algumas horas de sono a menos e uma dose extra de stress, Jorge estava preparado para passar o dia arrumando as coisas e se despedindo do pessoal.

    Se despedir era bem mais fácil na teoria. Depois de alguns anos trabalhando no mesmo lugar onde a vida profissional começou, ir embora era um pouco assustador. Ao se despedir de todos os amigos que fizera entre aquelas paredes, Jorge se lembrou de muitas ´histórias, como tinha conhecido cada um deles, como uma parte deles sempre estendeu a mão quando ele precisou de ajuda e como muitos mais encontraram a mão dele estendida pronta para oferecer ajuda. Juntar as coisas também era mais fácil na teoria. As fotos em cima da mesa mostravam pessoas que partiram, outras que ficaram e mais algumas que estavam indo junto com ele. Boa parte das coisas sobre a mesa eram presentes. Agora ele precisava arrumar um lugar para tudo aquilo. Para tudo aquilo e para si. Aquele que foi o lugar de Jorge no mundo não era mais. E foi divagando sobre esse assunto que ele foi tomar um café. Se não estivesse tão distraído, teria percebido que outra pessoa também estava tomando café.

    — Ah… Oi, Jorge

    — Oi, Cristina… Não vi que você estava por aqui… Melhor eu deixar o café pra depois.

    — Relaxa, Jorge, hoje eu não vou brigar contigo — respondeu ela procurando algo nos armários da copa. — O falatório sobre a tua despedida tá tão grande que esse nosso encontro casual não vai gerar nenhum comentário.

    — Espero que sim — disse ele enchendo uma xícara. — Se tem uma coisa que eu não vou ter saudade é de toda essa fofoca por causa da gente — deu um gole no café.

    — Pelo menos pra alguma coisa tua demissão tem que servir, Jorge. O pessoal do jurídico já tá chorando só de pensar em como vai ser a partir de amanhã. Ao menos alguma coisa positiva tem que sair disso.

    — A galera vai ficar bem, eu não vou fazer essa falta toda. O pessoal só precisa aprender uma ou duas coisas pra poder brigar de igual pra igual contigo. Fora isso vai ficar tudo bem.

    — Teus amigos são meio moles mesmo. Vou começar a tratar só com Roberta. A gente se entende bem sem precisar brigar… Ficar brigando por tudo cansa.

    — Nem me fale… Não vou dizer que vou sentir falta de brigar com você duas ou três vezes por semana… Mas tirando a parte das brigas, foi bom trabalhar contigo, Cristina. Pelo menos até antes da tua amiga começar a espalhar histórias por aí.

    — Pois é — ela ficou alguns segundos em silêncio. — Acho que a gente ainda vai se ver por aí. Do jeito que vai o rolo de Fábio e Luciana, já já a gente vira padrinho.

— Nem me lembra disso. Fábio só fala da tua amiga o tempo todo. Qualquer dia eles casam… Eu ainda passo por aqui esse ano. No dia do amigo secreto do jurídico eu apareço por aqui.

— Passa lá pra dar um alô.

— Passo sim.

Cristina saiu sem dizer mais nada. Deixou Jorge sozinho com o resto do café e dos pensamentos. Ele estava mexendo no celular quando chegou uma mensagem dela.

“Boa sorte, Jorge… Eu ainda te odeio.”

Um Dia Eu Peguei e Fui Embora

Foi ano passado, também conhecido como o ano da graça de Nosso Senhor de 2015, que eu li Cidades de Papel. Li pra poder gravar um episódio do Epifania, podcast da Roda de Escritores, que sairia junto com o filme. O podcast nunca foi gravado, mas pelo menos eu gostei do livro e por causa dele parei pra refletir sobre um conceito bem interessante: a sensação de ir embora.

Em Cidades de Papel temos uma moça chamada Margot Roth Spiegelman que é famosa por desaparecer de tempos em tempos. Em dado momento a jovem comenta sobre a maravilhosa sensação de ir embora, sobre como é libertador deixar tudo pra trás e desaparecer. A ideia de sumir do mapa sempre habitou meu imaginário, tanto que um dos meus poucos contos publicados antes do blog tratava um pouco disso, mas foi só depois de ler Cidades de Papel que eu realmente tive vontade de saber como seria ir embora do nada. Esse ano finalmente aconteceu. Esse ano finalmente eu peguei e fui embora.

Teria sido mais legal se fosse sem aviso, mas não foi. Teria sido mais dramático se eu desaparecesse do mapa de um jeito que ninguém nem soubesse por onde eu andava, mas não foi nem perto. Eu não fugi de casa, eu saí do emprego, também não desapareci, só fiquei fora do alcance do radar das pessoas que trabalhavam comigo. Uma experiência muito banal, totalmente comum e sem qualquer traço do DNA de uma história fantástica, mas a sensação de fazer tudo isso não poderia ter sido melhor.

Ir embora, deixar tudo pra trás, acordar na manhã seguinte e lembrar de como ontem tudo estava diferente me fez sentir mais próximo da legítima liberdade social do que nunca. Obviamente as contas continuaram vencendo no dia dez, o dólar continuou nas alturas e o preço da gasolina continuou pela hora da morte. Dinheiro não começou a brotar das árvores e não demorou muito pro emprego novo começar, mas o gosto doce de ter ido embora ainda se faz sentir quando eu paro pra pensar na vida.

Desconheço as suas aspirações em relação ao abandono das coisas e às partidas inesperadas. Não sei quantas vezes você já fez algo do tipo na vida, mas achei que não haveria forma melhor de encerrar um hiato. Ir embora pode ser sensacional, mas muitas vezes o bom mesmo é estar de volta.

Retrospectiva 2015

    2015 acaba amanhã e nada mais justo do que o último post do ano ser um ligeiro resumo do que aconteceu ao longo desses últimos trezentos e sessenta e poucos dias. O texto de hoje é um pouco mais sério do que de costume. Espero que você não se importe.

    2014 foi um ano muito cabuloso. Graças a isso todo mundo esperava de 2015 uma folguinha. Mas no lugar disso tivemos um ano que se esforçou pra superar o seu antecessor. 2015 foi cabuloso na  mesma proporção, mas ele conseguiu ser cabuloso de uma maneira muito diferente. Esse ano foi o ano do absurdo.

    De dólar batendo quatro e vinte até barragem de lama rompendo, passando por pedofilia ao vivo pra internet toda ver e policial batendo em menor de idade. Esse ano foi um ano de notícias que não davam pra acreditar. Cada olhada no jornal era um exercício de incredulidade. Um ano em que descobriram que uma mulher que fugiu por engano da Coréia do Norte, vazaram uma carta do nosso vice-presidente e bloquearam o Whatsapp é um ano digno de nota. E não citei esses últimos exemplos por serem mais importantes, mas por serem tão absurdos quanto as coisas sérias que rolaram nesse ano cão.

    Particularmente eu considero que 2015 foi um grande aprendizado. Normalmente é isso que a gente consegue aproveitar de tempo ruim. Esse ano muita coisa deu errado, muita mesmo. Apesar da quantidade grande de cagadas e arrependimentos acabei aprendendo uma ou duas coisas. Não necessariamente as coisas que eu de fato precisava aprender, mas foi o que deu pra fazer. Esse ano eu atingi picos de stress nunca antes vistos, tive alguns dos momentos mais divertidos e emocionantes da vida, ganhei um LEGO de presente, comprei uma estante e finalmente coloquei o Cachorros de Bikini no ar. Comecei a ver coisas que eu não via antes e olhar de forma diferente pra coisas que eu sempre enxerguei.

    2015 nos deixa meio quebrados. Foram quase doze meses apanhando desse calendário que demorou pra terminar. A mensagem que ele deixa pra 2016 é simples: lute. Se 2015 foi carrasco, 2016 não quer ficar atrás. Lute. Esse ano tudo vai jogar contra a gente. Lute. Não precisa levantar bandeira nem se alistar em nenhum exército, basta enfrentar e resistir. Lute. Foram o que os bons exemplos de 2015 me mostraram. Foi o que eu aprendi com Imperatriz Furiosa em Mad Max, Rey em Star Wars e com várias mulheres de carne e osso que levantaram suas vozes em 2015. 2016 está nos chamando pra briga e não temos como fugir. Lute, mas se é pra lutar, lute como uma menina. Elas entendem muito bem disso, bem mais do que você pode imaginar.

 

Contos de Segunda #23

O despertador tocou outra vez. Era o segundo alarme. Marcelo estava acordado desde o primeiro e só levantaria da cama depois do terceiro alarme tocar. Era segunda-feira e Marcelo não tinha a menor pressa de levantar da cama, afinal hoje teoricamente seria seu ultimo dia no estágio. Mesmo decidido em trabalhar tão bem quanto nos outros dias, seu nível de empolgação era comparável a de uma pia de cozinha. O terceiro alarme tocou e ele pulou da cama.

O tempo estava meio nublado, mas fazia um calor dos infernos. A época do ano em que o sol do meio-dia ficava durante dez horas no céu. Marcelo tinha conseguido a façanha de subir no ônibus em movimento e não chegaria atrasado. Apesar dessa não ser a sua intenção, meia hora de atraso significaria meia hora a menos naquele ultimo dia. Ele passou pela recepção e entrou sozinho no elevador, refletiu sobre todas as outras vezes em que aquilo acontecera e em como esta era a ultima vez em que estava acontecendo. Quando o elevador chegou ao seu destino, Marcelo respirou fundo e saiu para encarar o último dia de sua rotina.

O final do seu contrato de estágio era desconhecido pelos demais colegas, qualquer evento de despedida só deixaria tudo pior, até por que boa parte daquelas pessoas não sentiriam falta dele. Marcelo sentou na frente do computador, enquanto esperava a máquina iniciar as funções reparou que havia um bilhete preso no teclado. “Vá na minha sala assim que chegar”, dizia o recado do seu supervisor que também era um dos gerentes do setor onde ele trabalhava. Mais uma vez ele respirou fundo, tentou colocar no rosto todo o ânimo que não tinha e seguiu para a sala do chefe.

Cinco minutos depois Marcelo saiu de lá. Pegou suas coisas e foi em direção ao elevador. Enquanto descia para a recepção lembrou das últimas palavras do chefe: “…vou te dar o resto do dia pra pegar os documentos e fazer o exame admissional. A partir de amanhã vou te explicar as suas novas funções”. Ele pensou na rotina que continuaria, na luta que seria acordar todas as manhãs, principalmente nas segundas, pensou em como os seus planos de vagabundagem foram frustrados e em como a função de estagiário tinha muito menos responsabilidade… Apesar de tudo isso o ânimo que estava no seu rosto era genuíno.

Deixa Terminar

Na semana passada eu publiquei um texto falando sobre o final de uma série que eu gosto muito e sentimento que o fim das coisas desperta (caso não tenha lido clique aqui). Mas um dia desses recebi uma noticia que me fez refletir: Naruto acabou, mas voltou. Não sei exatamente se a volta foi definitiva ou se foi ligeira pra matar a saudade. A questão verdadeira aqui é a seguinte: não estão deixando as coisas terminarem. Mas o maior exemplo disso nem é Naruto, ele não chegou nem aos pés de Toy Story.

Quando saiu Toy Story 3 eu me preparei pra dar adeus a uma coisa que fez parte da minha infância. Lá em 1995 eu fui pro cinema pela primeira vez e o filme em cartaz era Toy Story. Nem preciso dizer que eu me apaixonei pelo filme, e pela Pixar, naquele momento. Foi todo esse amor que eu levei pra sala de cinema alguns anos depois, quando fui ver o ultimo Toy Story. No fim do filme eu e boa parte da galera estávamos aos prantos. Não só pelo desfecho emocionante de um filme carregado de emoção, mas também daquela ser a despedida de personagens que permearam minha infância e moldaram meu caráter infantil. Aí pegam e anunciam que vai ter um Toy Story 4.

A primeira coisa que eu pensei foi “e eu chorei aquilo tudo pra NADA?”. A segunda coisa foi “tão de sacanagem” “eles não querem largar o osso mesmo”. Dizem por aí que em time que tá ganhando não se mexe, mas de uns tempos pra cá a galera tá levando isso bem a sério. Não sei se é por medo de arriscar ou por puro comodismo, mas nunca antes se reciclou tanta ideia quanto hoje em dia. O retorno garantido deixou a possibilidade de fazer algo novo em segundo plano. A zona de conforto criativa se tornou confortável demais, pior pras ideias novas, que estão cada vez mais sem espaço.

Pra finalizar eu digo que se é pra terminar que termine, deixem que faça falta e dê saudade. Deixem que as coisas novas venham e conquistem seus próprios lugares dentro dos nossos corações. Não parem de procurar a fórmula do ouro só por que conseguiram fazer o chumbo ficar brilhante.

Acabou

Acabou. Foi um dia desses. Não foi sem aviso, nem foi antes da hora, mas chegou ao fim. Depois de tanto tempo acabou. Não que fosse uma coisa muito importante na minha vida, mas fazia parte. Sentirei falta? É provável. Mas talvez o sentimento de que nunca mais aquilo será uma novidade é que me deixe um pouco triste, mas fazer o quê? Acabou. Nesse momento, nobre leitor, a pergunta que surge em sua cabeça deve ser “O que foi que acabou?”.

Um dia desses chegou ao fim uma das séries de maior sucesso de seu gênero, referência cultural pra toda uma geração. Antes de ouvir a resposta peço a você, caro leitor, que abandone esse texto apenas depois da conclusão do meu raciocínio. De acordo? Ótimo, então já posso dizer que, um dia desses, Naruto acabou.

Antes de descarregar ofensas contra mim deixe que eu me explique.

Não sinto nada pelo fim da série em si. Falo sério. Apesar de me considerar um fã não foi isso que me motivou a escrever essa pequena reflexão. Mas sim o que eu pensei depois do fim da história do ninja galego de cabelo espetado. O que eu sinto é aquilo que todos nós sentimos quando algo simples e aparentemente banal, como uma série de TV, de histórias em quadrinhos, filme ou novela, que faz parte de nossas vidas durante muito tempo acaba. A sensação de que as coisas estão mudando. E atire a primeira pedra aquele que se sente plenamente confortável com o sentimento de mudança. Não é culpa sua, fomos programados assim.

Pensar que nunca mais vou parar uns minutos pra debater sobre os últimos capítulos com algum amigo, ou ouvir alguma novidade que me faz correr atrás do que eu ainda não li tem um gosto meio amargo. Amarga a boca quando eu penso que um dos elos que eu ainda tinha com os meus tempos de adolescência virou passado, e hoje habita apenas na lembrança, junto com os meus 16 anos. De que a próxima vez que eu conversar sobre isso com alguém vou utilizar apenas verbos no passado. De que no máximo eu vou poder reler o que eu já li. Menos uma coisa na lista do que faz tempo que eu leio/assisto/acompanho. E isso amarga

Talvez pareça exagero da minha parte, mas quem nunca se sentiu assim? Quem nunca sentiu falta ao fim de uma série de filmes ou de livros, novela ou seriado de TV? Quem nunca pensou em como teria que arrumar outra coisa pra discutir com os amigos ou com os colegas de trabalho que compartilham o mesmo gosto pelo assunto?

No final todos esperam curiosos pelo fim, mas não querem romper os laços e deixar aquilo pra trás. Não vou cair no absurdo de dizer que minha vida nunca mais vai ser a mesma depois disso, mas sempre vai ser estranho pensar que acabou.

Contos de Segunda #1

Armando estava se aposentando. Trabalhava na mesma empresa há quinze anos e era considerado um funcionário exemplar. Pontual e com pouquíssimas faltas ao longo desses anos todos. Ele não andava muito satisfeito com o trabalho, mas a eminencia da aposentadoria estava fazendo maravilhas com seu humor. Pelo menos até a ultima sexta-feira, quando ele notou que segunda seria seu ultimo dia de trabalho.

Passando os olhos nervosos pelo calendário ele lembrou de um feriado que passou batido. Ele ainda precisaria trabalhar mais um dia. Imediatamente o clima de “festa de despedida” foi construído em sua mente. Pessoas que ele não queria mais ver na vida colocariam a máscara de amigos de trabalho e descarregariam uma tonelada de palavras falsas em seus ouvidos. A paciência já estaria esgotada antes da hora do almoço, quando provavelmente ele seria coagido a almoçar junto com um bando de colegas de trabalho que sentirão pouca ou nenhuma falta dele. E além de tudo isso ainda seria segunda-feira.

O sábado e o domingo foram uma tortura. Todo o desgaste mental foi antecipado de um jeito que Armando acordou naquela segunda como se tivesse passado o fim de semana numa guerra. De fato a guerra existiu, dentro da cabeça dele. Ao entrar no carro já estava com raiva de metade do mundo. Quando virou a esquina na rua do escritório já tinha listado os prós e os contras de cometer alguns homicídios.

No momento em que passou pela frente do prédio ele teve uma epifania. A velocidade não reduziu, ele passou direto pela entrada da garagem, virou duas esquerdas, caiu no engarrafamento de uma avenida. Quando ele estacionou o carro na beira mar respirou fundo, encarou o mar, olhou nos olhos da segunda-feira e disse:
“Não hoje, nem nunca mais”

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