— Ontem eu tive um sonho — começou Anabela mergulhando o sachê de chá na caneca de água quente. — O mesmo sonho dos outros dias.
Ela estava na cozinha da casa do avô, sentada à mesa tomando chá. Ele estava no fogão cuidando do jantar e vendo as notícias em uma televisão com o volume baixo.
— Com as cores no céu que desciam e formavam uma imitação do seu quarto? — Respondeu o avô de Anabela.
— Sim — a moça deu um gole no chá, ainda estava fraco, a dança do sachê na caneca recomeçou. — Só que foi diferente. Quando eu acordei estava sentada na minha escrivaninha, com a caneta na mão…
— Como das outras vezes, com a caneta prestes a encostar no papel — interrompeu o velho.
— Dessa vez eu tinha escrito alguma coisa… Uma coisa maldita.
O avô de Anabela se esticou como se uma língua de gelo tivesse escorregado pelas suas costas. Ele apagou o fogo do fogão, se virou e contemplou a face inexpressiva da neta por alguns instantes antes de conseguir falar.
— Você ainda estava doente?
— Sim.
— Você conseguiu dormir ontem durante o dia?
— Não.
— Que horas eram quando você acordou?
— Três e meia da manhã. Estava lá escrito no meu caderno… Um parágrafo de um texto maldito. Um trecho de algo tão horrível que eu desmaiei depois de ler.
Os olhos do velho arregalaram. Suas mãos tremiam de leve quando ele puxou a cadeira para se sentar. A boca se movia tentando articular palavras que não saíam da garganta. O suor brotou das têmporas, se pelo nervosismo ou pelo esforço de falar não se sabia.
— Quando eu levantei do chão o pedaço escrito da página não estava mais lá — os olhos frios da moça encontraram os olhos assustados do velho.
— Algo te usou para chegar aqui — o raciocínio do avô de Anabela tinha acelerado depois de passar o choque. — Pra chegar aqui ou… Para enviar uma mensagem… Você leu, mas não era pra você. Foi por isso que não suportou quando leu.
— O que é aquilo? — Disse Anabela levantando da mesa para aumentar o volume da televisão.
O noticiário mostrava um homem sendo levado por enfermeiros para uma ambulância enquanto se debatia e urrava palavras incompreensíveis.
“Essas imagens foram feitas hoje pela manhã na frente de uma tradicional loja de antiguidades no centro da cidade. O dono da loja, o senhor Clóvis Bandeira de sessenta e três anos, teve um colapso nervoso e começou a agredir funcionários e clientes da loja. Segundo relato de testemunhas, Clóvis recebeu uma carta pouco antes de ter o surto. Os funcionários precisaram segurá-lo até a chegada da ambulância”
— É essa carta, foi o que eu escrevi — as pernas de Anabela teriam cedido caso ela não estivesse apoiada no balcão da cozinha. — Precisamos encontrar a carta e destruí-la. Esse homem foi só o primeiro, mais alguém vai ler esse maldito papel e vai… E vai…
— Ainda não são nem seis horas — respondeu o velho olhando para o relógio da parede. — Com sorte a gente pega a loja ainda aberta.
A loja ainda estava aberta quando eles chegaram lá. Ao contrário das demais lojas, bares e fiteiros da mesma rua, as luzes estavam apagadas. Apesar da escuridão do antiquário ser tudo menos convidativa, Anabela e seu avô se apressaram para entrar.
Estantes e armários lotados de objetos antigos compunham o mobiliário. Os corredores apertados entre eles faziam curvas estranhas e impediam que a luz da rua penetrasse no interior da loja. Apenas um feixe de uma luz fraca quebrava a escuridão lá no fundo.
— O dono deve ter um escritório ou algo do tipo nos fundos da loja — apontou o avô de Anabela.
A moça puxou o celular e ligou a lanterna.
— Fique aqui, vovô — disse a moça tentando manter a voz firme. — Se alguma coisa estiver errada o senhor vai atrás de ajuda.
Anabela partiu na direção dos fundos da loja antes de ouvir uma resposta.
O cheiro da madeira antiga preenchia o ambiente. A poeira dançava na frente da luz da lanterna. O silêncio só era quebrado pelos passos e pela respiração da moça. Os passos ficaram mais cuidadosos. O escritório estava cada vez mais perto. Ela parou.
E ouviu outro passo.
Ela voltou a caminhar, dessa vez um pouco mais rápido. Algo atrás dela andava com passos mais lentos.
Algo caiu no chão.
Anabela não parou. Mais dois passos e estaria no escritório. Foi então que algo se mexeu na sua mão.
Uma mensagem chegara no celular fazendo o aparelho vibrar. O susto fez a moça soltá-lo. A respiração pesada de alguém que vinha logo atrás podia ser ouvida.
— Escreva — sussurrou uma voz.
Anabela correu para o escritório e fechou a porta assim que passou por ela. Fechou o trinco e começou a vasculhar. Não demorou muito para que ela visse um envelope de papel encardido sobre a mesa. Ao lado do envelope estava o pedaço da folha do caderno dela.
Algo esmurrou a porta
Anabela viu sobre a mesa um isqueiro. Ela queimaria o pedaço de papel e acabaria com isso. Algo úmido escorria pelo rosto dela, o que era muito estranho,ela não sentia como se estivesse chorando. Os passos pararam na frente da mesa, uma mão pegou o isqueiro e a outra o pedaço de papel.
Outra pancada na porta
Os dedos trêmulos lutavam para acender o isqueiro, depois de algumas tentativas finalmente conseguiram. As chamas lamberam o papel.
A porta se escancarou.
Um homem entrou no escritório com passos trôpegos.
— Escreva… Termine… Escreva o resto…
O papel queimava lentamente. Anabela deu a volta na mesa para se afastar do homem.
— Não queime… Não… Termine.
Algo molhado escorreu do rosto de Anabela e pingou no papel, as chamas engoliram o papel de uma vez e por pouco não deixaram os dedos da moça queimados.
— AAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHRRRRRRGGGG — urrou o homem ao ver as chamas.
Num ímpeto ele avançou na direção da moça e pulou por cima da mesa. Anabela desviou e correu para fora do escritório. Viu a luz da lanterna do celular no chão e pegou o aparelho antes de bater a porta. A corrida na direção da entrada durou poucos segundos. A moça saiu da loja antes que o avô pudesse entender o que estava acontecendo. Menos de um minuto depois os dois já estava no carro a caminho de casa.
— Eu consegui! Queimei o papel! Tinha um homem lá, ele tentou me impedir, mas eu… — A expressão perplexa do avô fez Anabela parar de falar. — O que foi, vovô?
— O que é isso no seu rosto, Anabela? É tinta?
A moça puxou um espelho da bolsa para ver. Ela não sabia bem o por quê, mas lágrimas pretas de tinta escorriam dos seus olhos.