Todo o plano de Luciana e Roberta para juntar Jorge e Cristina não começou hoje. Esse conto, além do retorno de Jorge e Cristina à nossa série semanal, é uma continuação dos Contos de Segunda#34, Contos de Segunda #42 e Contos de Segunda #44.
— Você e seu rolo atual vão jantar no dia dos namorados, mas em vez de aproveitar o romantismo de um momento a dois comendo sushi, vocês vão articular um blind date comigo e um amigo dele.
Era sexta-feira. O dia dos namorados daquele ano caía no domingo e Luciana estava tentando convencer Cristina a não passar o dia 12 sozinha em casa. As duas estavam almoçando, Luciana resolveu comer um sanduíche, ela sabia que Cristina comeria alguma salada complicada que deixaria metade do cérebro dela ocupado durante a refeição. Quando o sanduíche terminou o prato de salada ainda estava na metade.
— Falando desse jeito até parece um absurdo, Cristina. Minhas intenções são puras e minhas ações movidas exclusivamente pelo sentimento sincero que eu nutro por você – uma dose cavalar de teatralidade estava depositada em cada palavra.
— Sei lá, Luciana. Não tô no clima de romance ultimamente, principalmente quando aparece uma oferta pra segurar vela em dupla — apesar da complicação da salada o cérebro de Cristina estava funcionando melhor que o esperado.
— Vai ser legal, amiga. Preciso que você vá lá pra aprovar meu guitarrista. Lembra dos meus outros namorados? Graças a você eu me livrei de dois malucos, um eco terrorista e um fanático por futebol. Nunca namorei um músico, sua avaliação se faz necessária… E vai ser de graça.
Cristina revirou os olhos como se procurasse uma solução dentro da própria cabeça. Olhou para o prato de salada, mas o alface não parecia ter uma solução escrita nas folhas. Ela respirou fundo, olhou Luciana nos olhos e disse:
— Tá bom, tá bom — ao ouvir essas palavras Luciana bateu palmas eufóricas de satisfação. — Mas você tem que me garantir que esse amigo não é um daqueles malucos de academia, nem um que vai votar em Bolsonaro, nem daquela galera do “ain, não tinha isso no livro” e nem aqueles malucos por quadrinhos — cada um dos tipos proibidos era contado nos dedos.
— Relaxa, gata. Pode ter certeza que o cara é perfeito pra você.
— Já te disse pra não me chamar assim
— Assim como?
— “Gata”. Vi em algum lugar que não se deve confiar em uma mulher que chama a outra de “gata”, acabei ficando com isso na cabeça. Não sei se isso tem fundamento, mas por via das dúvidas não me chame desse jeito.
O dia 12 não demorou para chegar. Era fim de tarde quando Luciana colocou a chave do carro na mão do manobrista. O restaurante japonês não era tão grande, mas era bem refinado. Em condições normais seria impossível conseguir uma reserva para o dia dos namorados tão em cima da hora, mas o guitarrista de Luciana faria uma apresentação no restaurante às oito da noite, de alguma forma aquilo ajudou com a reserva. Pouco depois de cruzar a porta um rapaz se aproximou para atendê-las.
— Boa tarde, senhoritas. Qual o nome que está na reserva?
— Boa tarde — respondeu Luciana. — A reserva está em nome de Fábio. Imagino que ele já esteja por aí.
— Está sim, me acompanhem por favor.
O rapaz conduziu as duas até chegar a um salão. Próximo do bar estava um pequeno palco onde uma moça tocava piano e cantava. Cinco mesas antes do palco estavam Fábio e seu amigo. Os dois conversavam empolgados e não notaram as moças até que as duas estivessem bem perto.
— … Eu tô dizendo, meu velho, essas coisas só funcionam na televisão e… Olha elas aí — disse Fábio.
Instintivamente o outro homem da mesa se virou ainda achando graça da conversa interrompida. Em uma fração de segundos o ar de riso foi convertido em uma cara de velório. A reação de Cristina não foi muito melhor.
— Ah, não… — Disse ela baixinho. — Oi… Jorge.
— Cristina, que… Surpresa — o olhar de Jorge foi desviado imediatamente para Luciana. — Não sabia que a menina de quem Fábio estava falando era você, Luciana.
— É sempre bom te ver também, Jorge. A gente chegou muito cedo, Guitarrista?
— Na hora certa, Lulu — Fábio se levantou, deu um beijo no rosto de Luciana e ofereceu a cadeira ao lado de Jorge. — E você é Cristina. Sou curioso pra te conhecer faz tempo.
— Digo o mesmo, Fábio. Não sabia que você e Jorge eram amigos — respondeu Cristina sentando de frente para Jorge, o olhar dos dois se encontrou por um instante. Ele estava tão raivoso quanto ela.
— Então, Luciana, foi Roberta que apresentou vocês dois? — Perguntou Jorge desbloqueando a tela do celular.
— Ela me levou pra um ensaio do casamento do irmão dela e a gente se conheceu lá.
— Ah, é mesmo? — Os dedos de Jorge digitavam rapidamente uma mensagem para Roberta. “Você não devia ter se metido nisso, Roberta”.
— Eu não tinha sido convidada pro casamento e estava curiosa sobre a banda. Cristina não topou me levar de penetra e Roberta acredita piamente que o irmão dela me detesta.
— Tenho a forte impressão que o irmão dela também acredita nisso — interrompeu Cristina enquanto enviava uma mensagem para Roberta. “Vou te enforcar com as tuas tripas, Roberta”.
— Se vocês me dão licença, eu vou no banheiro e volto logo — disse Jorge olhando diretamente para Cristina.
A moça entendeu a deixa. Jorge podia estar no topo da lista negra, mas eles precisariam trabalhar juntos pra sair dessa situação.
— Eu vou dar uma passada no bar, estou com planos de ficar meio bêbada, melhor começar cedo.
Os dois seguiram caminhos distintos. Jorge partiu em direção ao banheiro, mas antes disso entregou um cartão a um garçom qualquer pedindo para entregá-lo à moça que estava chegando no bar. Assim que o cartão chegou Cristina discou o número.
— Se você tiver alguma coisa a ver com essa história… Alguma coisa com saquê e morango, por favor. Se você estiver no meio disso, Jorge, pode ter certeza que eu te mato antes de matar Roberta.
— Me mata depois, aí eu te ajudo a esfolar Roberta viva. Eu convenci Fábio a tocar no casamento do irmão dela e é assim que ela me paga.
— A culpa só podia ser tua, Jorge. Deus queira que esse teu amigo da guitarra não tenha muita coisa pra contar a Luciana.
— Relaxa que Fábio sabe menos coisa do que Luciana, pelo menos sabia. A gente precisa de um plano.
— Depois dessa mão-de-obra toda não tem plano? E Luciana ainda quer me juntar contigo, sinceramente.
— E ainda me perguntam por que eu não gosto de você… Fábio toca às oito, são dez pras seis. Imagino que ele vai sair da mesa pelo menos meia hora antes…
— Eu não vou ficar mais de duas horas olhando pra tua cara, Jorge. Antes disso eu pulo no pescoço de Luciana e a gente vai daqui pra delegacia ou pro hospital… Tais de carro?
— Sim. E pelo jeito da pergunta Luciana é a tua carona.
— Foco na solução, Jorge. É só a gente dar um jeito de disfarçar e depois dá uma escapulida. Eu fico no bar e você finge que tá com dor de barriga.
— Por que eu tenho que fingir que estou com cag… Dor de barriga? É só eu ir pro bar também, digo que quero ver a pianista de perto.
— Nós dois no mesmo lugar e eles não vão tirar os olhos da gente. Vou voltar pra mesa, lá a gente pensa em alguma coisa.
Meia hora se passou. Luciana e Fábio pediram sushi, Jorge não pediu nada e Cristina resolveu não tomar mais nada alcoólico. A tensão da mesa era crescente. Luciana e Fábio pareciam estar se divertindo muito com toda a situação, enquanto Jorge e Cristina estavam se sentindo feras enjauladas.
— Jorge, já comeu desses sushis com camarão? — Perguntou Fábio. — Eu acho meio estranho.
— Esqueceu que eu sou alérgico? Se eu colocar um camarão na boca já começo a ter reação.
— Sério? — Perguntou Luciana genuinamente surpresa.
Cristina olhou para Jorge. Quando ele olhou de volta ela indicou o camarão com os olhos. Ele fez “não” com a cabeça, ela fez “sim.
— Sério, Luciana. Vê só — antes que alguém pudesse ver Jorge jogou um pedaço de camarão dentro da boca, mastigou duas vezes e cuspiu.
Imediatamente a língua dele dobrou de tamanho, o rosto ficou vermelho e estava começando a inchar.
— Meu Deus, Jorge! — Gritou Cristina da forma mais exagerada que ela pode. — Tá doido? A gente tem que te levar pro hospital.
— Assho que ffffim — respondeu o pobre Jorge.
— Me dá a chave do carro, eu te levo — disse Cristina. — Fábio precisa tocar e Luciana leva ele depois.
Os dois se levantaram e saíram correndo. Antes que Luciana e Fábio pudessem entender tudo, Cristina já estava dando partida no carro. Jorge abriu o porta-luvas, sacou um tubo de plástico, tirou uma ponta e cravou na perna. O antialérgico tinha sido rápido o suficiente para salvar Jorge de um possível choque anafilático. Cristina se colocou no caminho de casa, pouco antes de chegar lá Jorge conseguiu falar.
— Você só pode ser doida, Cristina.
— Não te obriguei a fazer nada, Jorge, mas não vou ser injusta com você. Parabéns pela coragem.
— Não pensei muito, dois segundos a mais de raciocínio e a gente ainda estaria lá — o nervosismo na voz dele era perceptível.
— A gente precisa dar um jeito nisso, Jorge, a situação tá fora de controle.
— Segunda-feira a gente pensa nisso, Cristina. Esse remédio já tá me deixando com um sono inacreditável. Me deixa em casa que eu te coloco num táxi ou pego meu carro na tua casa amanhã cedo.
— Eu que não vou pagar táxi, acabei de salvar tua vida. Mereço no mínimo uma carona, com ou sem você no carro.
— Então considere isso como o seu presente… Feliz dia dos namorados, Cristina.
Antes que ela pudesse responder Jorge já estava dormindo. Um sorriso surgiu no rosto da moça. Ela dobrou uma esquina e parou em um posto de gasolina, pegou o telefone de Jorge e ligou para a mãe dele. Ele dormiu antes de dizer onde morava.