Não é um blog sobre cachorros e bikinis

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Contos de Segunda #86

Moacir estava de mau humor, não que isso fosse novidade. Ele deixava o mau humor de todas as segundas ao lado da carteira ou no bolso da calça para não correr o risco de esquecer. A diferença naquela segunda em especial era justamente o fato do mau humor ter um motivo, coisa bem rara atualmente. Moacir estava com um humor péssimo por estar com a sensação de que não tinha mais tempo para nada.

Na semana passada Moacir comprou um livro novo e um jogo de computador que estava em promoção, descobriu que tinha saído a temporada nova da série que ele acompanha e que rolou a estreia de mais duas séries novas que ele estava doido para ver, apareceram os amigos com a história de fazer encontros periódicos de jogatina offline e, além disso tudo, ainda estava chovendo todo dia.

Em todos os dias da semana anterior Moacir saiu de casa quebrando a cabeça para tentar achar uma forma de como otimizar o tempo. Tentou almoçar perto para ter mais tempo no horário do almoço, mas tudo que ele conseguiu foi encontrar com os colegas de trabalho que almoçavam perto e formavam uma fila que mais parecia a fila do show de um popstar adolescente. Experimentou pedir uma marmita da tia do almoço, só para descobrir que a tia do almoço tinha uma média de atraso de quarenta minutos em dias de chuva. Tentou levar a marmita de casa e acabou descobrindo que os outros marmiteiros do trabalho tinham um senso de comunidade tão forte que eles paravam para puxar papo mesmo nos dias em que ele não levava marmita, principalmente na hora do almoço.

Já que a hora do almoço se tornou inviável, ele decidiu diminuir a hora do almoço para tentar sair mais cedo. Teria dado certo se ele não tivesse feito isso justamente nos dias em que precisou fazer hora extra. Tentou acordar mais cedo, mas tudo que conseguiu foi descobrir como odiava o som do despertador antes do sol nascer. Ele teria conseguido dormir mais tarde se tivesse tentado isso antes de tentar acordar cedo, mas o sono dele estava tão doido que ele passou o resto da semana só pensando em dormir. O fim de semana chegou e tudo teria dado certo se a internet não estivesse com problemas, impedindo Moacir de baixar o jogo novo e de assistir às séries que queria.

E eis que chegou a segunda-feira. O coração de Moacir estava borbulhando com o ódio mais puro e profundo que uma pessoa poderia sentir. Ele sentou diante do computador com a plena certeza de que poderia matar alguém. Ligou a máquina e esperou aparecer a tela do login. No lugar dela apareceu uma tela de erro. Moacir juntou as mãos no rosto e se perguntou o porquê de tamanho sofrimento. Antes de obter uma resposta satisfatória o telefone tocou.

— Moacir, verifica aí teu e-mail que parece que o relatório da semana passada acabou voltando — disse o chefe. — A gente vai precisar rever.

Silêncio.

— Moacir?

Silêncio.

— Alô?

Um som alto de algo quebrando veio como resposta.

— É… Chefe?

— O que foi isso, Moacir?

— Não vou poder trabalhar no relatório.

— Por que, Moacir?

— Meu monitor acaba de quebrar.

— Teu monitor quebrou?

— É. Eu coloquei a senha errada e a tela explodiu.

— Aconteceu alguma coisa contigo?

— Só a minha mão que tá meio machucada, mas nada que um pouco de gelo não resolva.

Os Planos (Problemáticos) de Fim de Ano

    Uma das coisas mais comuns no final do ano é ter um plano. Uma programação, uma tradição, algo que se repete ritualisticamente a cada doze meses. Como dezembro tem toda aquela vibe de união das pessoas e derivados, o mais comum (e mais óbvio) é reunir a família pra todo mundo passar junto essa época bonita que antecede o falecimento de mais um ano. Só que, assim como tudo que envolve família, essas atividades lúdico-alimentícias são potencialmente problemáticas.

    Existem famílias de várias formas, tamanhos, cores e sabores. E é justamente por causa dessa diversidade que nem sempre estar com a família é uma atividade prazerosa. Primos que você não gosta, tios que fazem perguntas constrangedoras, agregados inconvenientes e aqueles parentes que não se bicam travando uma guerra fria que por pouco não vai virar um apocalipse nuclear. Talvez isso não aconteça com você. Talvez a sua família não tenha nenhum dos arquétipos listados acima, mas o que pega todo mundo é justamente o dever, quase a obrigatoriedade.

    “Esse ano eu nem queria ir”. Essa frase já pode ter saído pela sua boca ou entrado pelos seus ouvidos. Mas a realidade é uma só: boa parte dos problemas das programações de fim de ano está no simples fato da programação existir. Vamos exemplificar pra ficar mais claro. Imagine que você faz algo todo ano com a sua família, agora imagine que apareceu algo que você quer muito fazer com pessoas que não são da sua família. Imaginou? Agora sabe do que eu estou falando. Por isso as pessoas relutam tanto em mudar as tradições de fim de ano, porque o natural do ser humano é evitar problemas pra si mesmo, um instinto de autopreservação que está em todos nós… Só que uma das coisas que o ser humano faz melhor é desafiar os seus instintos e por isso entramos no lado B da história.

    Muitas das atividades de fim de ano, mesmo as ruins, são perfeitamente administráveis ou no mínimo suportáveis, mas todas elas têm potencial pra se tornar bem pior do que já é. Uma forma excelente de fazer isso é introduzir um amigo secreto no meio dos festejos. E, como eu já falei no ano passado, amigo secreto pode ser um prazer ou um suplício. Em condições ideais de temperatura e pressão, você vai fazer a brincadeira em um ambiente onde todas as pessoas se conhecem e todos podem dizer o que querem. Normalmente o que acontece é que você não tira a pessoa que seria fácil de dar presente e termina tirando aquela sua tia que você (e todo mundo) só vê no Natal. E se for na pior das situações possíveis vai rolar um daqueles amigos secretos onde cada um leva um presente, os amigos secretos são tirados na hora e o limite de valor é cinquenta reais.

    “Não acredito que você não vai” é uma frase que já deve ter saído das nossas bocas ou entrado nos nossos ouvidos. Como um defensor das tradições familiares, eu nunca cheguei a ouvir, mas entendo perfeitamente o dilema vivido por nós quando precisamos decidir entre seguir os hábitos ou tentar algo diferente. E, a menos que seja uma experiência realmente desgraçada, recomendo que você opte pela família sempre que possível. Nunca passe mais de dois anos seguidos longe dos ritos do seu clã e tente ao máximo não criar problemas pra você mesmo. O final do ano já pode ser uma época bem ruim sozinho, ele não precisa da sua ajuda pra ficar pior.

Férias

Não é novidade pra ninguém que muita coisa que você fazia/dizia/sentia/gostava quando era criança muda totalmente quando você vira adulto. Elas são uma forma da vida te convencer de que a era de ouro da sua vida já  era e que toda esperança de que ela voltará deve ser abandonada e a vida tem que seguir rumo à maturidade. Um dos grandes exemplos disso é o significado diferente que uma das palavras mais sublimes da língua portuguesa pode ter. Estou falando das belas, maravilhosas e ansiosamente aguardadas Férias.

Quando você é criança, e até um tempo depois disso, as Férias nada mais são do que um período em que você fica longe da escola. É quando se tem tempo de sobra pra fazer a única coisa que dá pra fazer nas idades mais baixas: ser criança. Coisa que fica muito mais fácil quando a escola não está lá pra atrapalhar. Tudo isso muda muito quando a gente cresce, por um simples fato: um adulto é dono do seu próprio nariz, mas não é dono do seu próprio tempo.

Pra todo mundo, ou pelo menos pra maior parte das pessoas, chega uma hora da vida em que é preciso oferecer sua força de trabalho em troca de alguns cobres no fim do mês. Por causa disso todo o tempo que possuímos é gasto com o trabalho ou tem o uso que fazemos dele limitado por causa do trabalho. Por isso a sensação que se tem quando as Férias chegam e você é adulto é justamente a de que seu tempo é seu mais uma vez.

Mas ao contrário dos tempos de criança, nem sempre as férias chegam de maneira tranquila. Elas são um direito garantido de todo o trabalhador com carteira assinada, mas elas podem sofrer um ataque severo dos chefes e acabarem adiadas, reduzidas ou simplesmente ignoradas. Além disso nada pode ficar pendente. Sair de férias e deixar trabalho pra depois está totalmente fora de questão. O único trabalho que deve esperar pela sua volta é o trabalho que surgiu durante sua ausência e não o que já estava lá antes de você sair.

Depois de todas as barreiras vencidas e todos os gigantes derrubados é chegado o momento sublime em que sentimos nossas velas estufadas pelos ventos da liberdade e navegamos para as águas tranquilas de um paraíso onde o dinheiro entra na sua conta sem que uma palha seja movida.

Depois de alguns dias voltamos pra guerra. Em pouco tempo as férias serão limadas de nossas mentes e não serão nada além de um pensamento distante de uma outra vida que não parece ser a nossa. Mas é como diz aquela musica, você não precisa de férias quando não tem do que fugir… Mas todos nós temos e por isso tiramos férias.

Contos de Segunda #23

O despertador tocou outra vez. Era o segundo alarme. Marcelo estava acordado desde o primeiro e só levantaria da cama depois do terceiro alarme tocar. Era segunda-feira e Marcelo não tinha a menor pressa de levantar da cama, afinal hoje teoricamente seria seu ultimo dia no estágio. Mesmo decidido em trabalhar tão bem quanto nos outros dias, seu nível de empolgação era comparável a de uma pia de cozinha. O terceiro alarme tocou e ele pulou da cama.

O tempo estava meio nublado, mas fazia um calor dos infernos. A época do ano em que o sol do meio-dia ficava durante dez horas no céu. Marcelo tinha conseguido a façanha de subir no ônibus em movimento e não chegaria atrasado. Apesar dessa não ser a sua intenção, meia hora de atraso significaria meia hora a menos naquele ultimo dia. Ele passou pela recepção e entrou sozinho no elevador, refletiu sobre todas as outras vezes em que aquilo acontecera e em como esta era a ultima vez em que estava acontecendo. Quando o elevador chegou ao seu destino, Marcelo respirou fundo e saiu para encarar o último dia de sua rotina.

O final do seu contrato de estágio era desconhecido pelos demais colegas, qualquer evento de despedida só deixaria tudo pior, até por que boa parte daquelas pessoas não sentiriam falta dele. Marcelo sentou na frente do computador, enquanto esperava a máquina iniciar as funções reparou que havia um bilhete preso no teclado. “Vá na minha sala assim que chegar”, dizia o recado do seu supervisor que também era um dos gerentes do setor onde ele trabalhava. Mais uma vez ele respirou fundo, tentou colocar no rosto todo o ânimo que não tinha e seguiu para a sala do chefe.

Cinco minutos depois Marcelo saiu de lá. Pegou suas coisas e foi em direção ao elevador. Enquanto descia para a recepção lembrou das últimas palavras do chefe: “…vou te dar o resto do dia pra pegar os documentos e fazer o exame admissional. A partir de amanhã vou te explicar as suas novas funções”. Ele pensou na rotina que continuaria, na luta que seria acordar todas as manhãs, principalmente nas segundas, pensou em como os seus planos de vagabundagem foram frustrados e em como a função de estagiário tinha muito menos responsabilidade… Apesar de tudo isso o ânimo que estava no seu rosto era genuíno.

Tocou O Alarme

    “Tocou o alarme”. Talvez não seja algo que você pensa com frequência, mas com certeza é algo que você sente de vez em quando. Mesmo sendo seres, na maioria das vezes,  racionais, nós ainda temos instintos que dirigem muitas das nossas ações. Normalmente esses instintos são discretos, mas alguns deles funcionam como verdadeiros alarmes mentais e como todo bom alarme acabam nos deixando meio malucos.

    Não importa a situação, nem onde você esteja, em algum momento aleatório vai soar um alerta na sua cabeça avisando da necessidade urgente de fazer determinada coisa. Seja a vontade repentina de voltar pra casa ou um desejo irresistível de pegar um caminho diferente na ida pro trabalho. Em algum momento toca um alerta vermelho dentro da sua cabeça e ele não vai parar até você fazer aquela determinada coisa, e todos nós sabemos que agir contra alguns instintos básicos demanda um esforço mental cabuloso que normalmente gera uma série de sensações desagradáveis. Provando que de nada vale ser uma criatura racional quando o alarme inventa de tocar. O senso de urgência nos atinge sem aviso, nosso corpo entra em sintonia com o campo magnético da Terra e nos empurra para a direção que devemos seguir quase às cegas em um movimento quase involuntário, tudo para que o alarme pare de tocar.

    No meu caso acontece algo muito parecido com o instinto migratório de outros animais. Em dada época do ano toca um alarme na minha cabeça pra me avisar de que eu preciso tirar minhas férias. Acho que nem preciso dizer que ele tocou um dia desses e me motivou a escrever esse pequeno relato do cotidiano, na tentativa de diminuir a minha ansiedade pelos dias de folga. Ainda preciso encarar 30 dias na rotina pesada do fim do ano antes de ser temporariamente alforriado. Enquanto isso o alarme soa cada vez mais alto.

Contos de Segunda #22

O conto de hoje é uma continuação direta da história de Maurício, protagonista do Contos de Segunda #2.

    O mundo acabou. A essa altura do campeonato isso já não era mais novidade, o apocalipse chegou meses atrás e , ao contrário do que era esperado, muita gente sobreviveu. Maurício é um desses sobreviventes e ele estava profundamente decepcionado com o fim dos tempos.

    A primeira coisa que Maurício fez foi arrumar um emprego. Ele trabalhava com uma atividade bastante curiosa: ele era chefe do departamento de coleta de pilhas. Pilhas eram um item muito importante no mundo pós-apocalipse, por algum motivo inexplicável a radiação das armas nucleares utilizadas na guerra transformara as pilhas alcalinas em uma fonte de energia inesgotável. Maurício detestava ficar catando pilhas e por isso todas as segundas ele acordava de manhã e pensava: “Bem que o mundo podia ter acabado direito”. Esse pensamento se repetia no caminho para o trabalho quando ele passava pelos religiosos que continuavam protestando contra Deus por tê-los abandonado num mundo destruído, e quando ele precisava encarar a fila da tirolesa para atravessar o abismo deixado pela ponte que ruiu na semana passada. O pensamento continuava quando ele via o tanto que as pessoas continuavam reclamando, principalmente por motivos que não tinham nenhuma relação com a situação desgraçada que era viver no fim do mundo. Ultimamente as pessoas começaram a reclamar da reclamação alheia. Era quase uma epidemia, chegava a ser pior do que as doenças do tempo do fim do mundo. Maurício precisava mudar de vida, mas as opções estavam bastante restritas. Ele precisava fazer algo radical.

    Na hora do almoço ele parou para contemplar uma pilha palito que havia sido encontrada num controle remoto quebrado. Ela emitia uma luz verde e tinha um cheiro esquisito. “E se eu engolir uma pilha dessas, só pra ver qual é?”, pensou Maurício. Ele não precisou de muita reflexão antes da pilha descer pela sua garganta. Depois de uma azia de quinze minutos, Maurício começou a enxergar as coisas meio esverdeadas, as unhas ficaram pretas e o cabelo começou a pesar na cabeça. A eletricidade começou a fluir pelo seu corpo e ele começou a sentir os dedos formigando. Ele não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas o fim do mundo estava ficando mais interessante do que ele esperava.

Contos de Segunda #21

Erick caçava dragões. Oficio bastante perigoso, tendo em vista que normalmente ele só dispunha de um escudo feito com couro de dragão, sua espada e uma catapulta. Apesar de não parecer, matar dragões era algo bastante sistemático e bem monótono em alguns casos. Mas não havia nada mais incômodo do que as exigências do sindicato: um dragão por semana, a carcaça devia ser entregue todas as segundas-feiras ao meio-dia em uma das sedes do sindicato espalhadas pelo reino. Era segunda-feira e Erick não caçara nenhum dragão.

Vontade de abandonar o emprego não era algo raro. O perigo do trabalho não estava compensando, o salário não era essas coisas todas e estava cada vez mais difícil caçar um dragão por semana e essa não era a primeira vez que Erick chegava ao primeiro dia útil da semana com as mãos vazias. Enquanto quebrava o jejum na estalagem ouviu dois viajantes conversando. Eles falavam de um dragão que aparecia toda segunda-feira no topo da colina e de como todos os caçadores de dragões que tentaram caçá-lo nunca mais foram vistos novamente por ninguém do sindicato. Caçar um dragão era sempre perigoso, caçar um que era impossível de ser caçado talvez garantisse uma aposentadoria precoce.

O caçador chegou ao topo da colina. O dragão estava lá. Grande e vermelho, dormindo aninhado sob a sombra de uma árvore tão velha quanto ele. Parecia uma presa fácil. Uma manobra padrão vinte e dois resolveria, contanto que ele se mantivesse no chão. Erick se aproximou silenciosamente, posicionou-se contra o vento para que a fera não sentisse o seu cheiro, a exatos vinte metros do alvo ele correu, sacou a espada e se preparou para saltar e desferir um golpe certeiro no olho esquerdo, mas uma voz o interrompeu.

– Tem certeza que quer fazer isso?

– Claro que sim, Dragão – as palavras saíam em tom de desdém.

– Hoje é só o começo da semana, Caçador. Não percebes que o dia já é ruim por si só? Não basta o tormento rotineiro de toda semana? Ainda queres me matar?

– Nada pessoal, Dragão, mas tua morte tornará meu começo de semana um pouco menos penoso.

– Teu ofício já é penoso o suficiente, estando eu vivo ou morto. Ainda terás de matar outro dragão nessa semana, do contrário te acharás na mesma desgraça daqui a sete dias.

– Detesto admitir, serpente desgraçada, mas a razão te cobre como a sombra desta árvore. O que sugeres que eu faça?

– Assenta-te recostado nesta árvore, dizem que o aroma de suas folhas esclarece os pensamentos e atrai pensamentos sensatos. Caso tenha desistido de me matar, obviamente.

– Desisti, Dragão. Creio que esta é uma boa hora para repensar a minha vida.

Erick se sentou recostado no tronco da velha árvore. Viu a luz do sol através das folhas e sentiu o aroma que preenchia o topo da colina. Em nenhuma outra segunda-feira Erick foi visto no sindicato dos caçadores de dragões.

Contos de Segunda #16

    Moacir deu um pulo da cama quando ouviu o despertador. Ao contrário de boa parte dos dias, hoje ele estava estranhamente bem humorado. O zumbido do ar condicionado passara despercebido, assim como o raio de sol que sempre entrava pelo buraco na cortina. Ele sentia como se nada pudesse estragar seu dia, e ele se esforçaria para tal.

    Quando foi para o chuveiro decidiu que não ouviria rádio. A única estação sintonizável do banheiro sempre tocava músicas bem irritantes e propagandas com os jingles mais chicletes que se tem noticia. Saiu do banho se perguntando por que ele se torturava todas as manhãs ouvindo àquela rádio? Depois de se vestir decidiu que não usaria relógio naquele dia, o relógio era antigo e Moacir sempre esquecia de dar corda. Tal fato era notado bastante tempo depois e gerava uma irritação tremenda no pobre homem. Saiu do quarto se perguntado por que ainda insistia em usar um relógio que sempre o deixava na mão.

    Saindo do apartamento errou o caminho do elevador e foi direto para a escada, quatro andares de escada o separavam do térreo. Com isso deixou de ouvir o barulho produzido pela porta do elevador, que sempre o fazia trincar os dentes de agonia. Enquanto descia as escadas não parou de se perguntar por que não fizera isso antes. Chegou ao térreo e foi direto para a rua, resolveu que não usaria o carro hoje. Em vez de passar mais de uma hora no transito pesado, caminharia por cinco minutos até a rua de trás, pegaria um táxi até o bairro onde trabalhava. Da rua de trás o taxista podia ir pelo sentido que não engarrafava. Ele não se incomodou de caminhar dez minutos até o escritório para que o taxista não precisasse pegar uma rua engarrafada. Tal solução nunca antes tinha passado pela sua cabeça, mas o fato dela ter passado naquele momento acabou deixando o dia um pouco melhor.

    Moacir não precisou se esforçar muito para que o trabalho não estragasse seu dia. Bastaram fones de ouvido e algumas músicas do tempo de adolescente para que nada de ruim entrasse e nada de bom saísse. As queixas dos colegas passaram despercebidas, os gritos do chefe com os fornecedores no telefone foram ignorados. Na volta para casa o plano de usar o táxi funcionou novamente, assim como ir pela escada para não ouvir o elevador. Ao chegar em casa percebeu que o jornal não fora recolhido pela manhã, ao observar a data percebeu que aquele dia maravilhoso tinha sido uma segunda-feira. Diante disso acabou decidindo que não deixaria os dias seguintes serem estragados por nada. Principalmente por ele mesmo.

Estamos Todos Atrasados

Lembro muito bem de ter ouvido essa frase várias vezes ao longo do segundo ano do meu ensino médio. “Estamos todos atrasados”, era a primeira coisa que o meu professor de português falava ao entrar na sala. Não me recordo se em algum momento realmente estivemos atrasados, também tenho a impressão de que o professor sempre entrava um minutinho depois do horário da aula começar, mas uma coisa que eu sei é que a sensação de estar atrasado volta e meia está presente na minha vida.

Talvez essa afirmação pareça estranha, mas não é incomum sentir que comecei algo depois do tempo, principalmente quando existe um prazo muito curto a ser cumprido. Também tem aqueles momentos em que, depois de pensar que estava tudo adiantado, você cai na real e nota que o atraso já está do tamanho de um mamute. Normalmente acontece quando trocamos o dia da entrega de algum trabalho, esquecemos um compromisso ou estamos com o relógio atrasado. Vale lembrar também que muitas vezes operamos no limite do cronograma, onde qualquer imprevisto nos faz atrasar. Esse ultimo tipo é o que normalmente nos faz arrancar os cabelos, que faz um calafrio subir quando olhamos pro relógio e que testa ao máximo os músculos cardíacos.

Independente do motivo se sentir atrasado, estando ou não atrasado, é uma sensação extremamente incômoda, tanto que o medo de se atrasar acaba gerando boa parte do nosso stress diário. Pensando nisso acabo me lembrando de algumas pessoas que parecem imunes aos efeitos nefastos do atraso. Como não consigo ser assim acabei escrevendo esse texto, não só para compartilhar um pouco da minha aflição, mas também pra aproveitar que o texto dessa sexta está atrasado e usar isso como fonte de inspiração.

Contos de Segunda #15

Amadeu acordou achando o mundo um grande pedaço de cocô orbitando o Sol. Segunda-feira, a mesma porcaria de sempre. Mais um dia estressante no trabalho estava pela frente, cheio de clientes pentelhos, subalternos com inteligência de ameba e superiores que tem parentesco próximo com as portas. Nada na geladeira estava dentro da validade, com exceção da margarina, do óleo de soja e da cola super bonder.

No jornal não tinha uma noticia animadora. Crise, derrota do time do coração, audiência da novela em baixa e outro prédio histórico entregue às baratas. Só faltava ver o resultado da Sena pra desgraça estar completa. Estava lá 03 16 24 43 48 57… 03…16… 24… 43 … 48… 57… Um acertador. Só um. Em quinze segundos Amadeu ficou milionário.

Amadeu levantou da cadeira achando que o mundo era um grande pedaço de chocolate orbitando o Sol, essa estrela maravilhosa e sorridente que acariciava a todos com seu calor gentil. A segunda-feira estava especialmente maravilhosa e um dia sensacional no trabalho estava pela frente. Como sempre os clientes, criaturas tão simpáticas e gentis ocupariam o telefone durante todo o dia, mas Amadeu sabia que podia contar com seus colegas. Seus subordinados eram tão capazes e talentosos que davam orgulho. Sem contar os seus superiores que eram tão habilidosos na gestão das pessoas quanto na gestão dos negócios. Infelizmente a comida da geladeira continuava vencida. De fato algumas coisas não podem melhorar com uma simples mudança de ponto de vista.

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