Não é um blog sobre cachorros e bikinis

Tag: Acidente

Contos de Segunda #90

Fernanda estava tentando controlar a raiva. A terapia estava começando a dar bons resultados e os acessos de fúria eram cada vez mais raros. Atualmente pouquíssimas pessoas tinham medo dela e menos ainda tinham motivos concretos para tanto. Uma dessas poucas pessoas era Cristina.

Fernanda e Cristina se conheciam desde sempre e, apesar de serem grandes amigas, as duas conheciam muito bem qual era o tamanho do pavio de cada uma, por isso elas sabiam quem chamar quando entravam numa briga. Não por acaso o contato de Fernanda no no celular de Cristina tinha o sugestivo nome de “Tropa de Choque”.

Cristina estava comprando o presente de aniversário da mãe quando recebeu uma mensagem:

“Tá afim de jantar hoje?”.

A mensagem era de Augusto, um cara com quem Cristina tinha saído umas três vezes. Ele não fazia muito o tipo de Cristina, mas tinha acabado de voltar da Europa e a moça estava começando a pensar no roteiro das próximas férias. Pelo menos os dois teriam bastante assunto. O encontro estava indo muito bem até que Augusto começou com um papo muito estranho sobre futuro, compromisso, relacionamentos e outras coisas que Cristina sabia muito bem onde iam dar. Era melhor dar um jeito de terminar logo aquele encontro.

— Desejam escolher uma sobremesa? — Disse o garçom ao recolher os pratos.

— Já passei do meu horário — respondeu a moça. — Só a conta por favor.

— Cristina, eu estive pensando muito nesses últimos dias… Pensando muito na gente — começou Augusto.

“Ah, não”, pensou ela.

O rapaz colocou a mão sobre a dela e olhou direto nos olhos da moça.

“Pelo amor de Deus… Não”.

— Faz tempo que eu quero assumir um compromisso, só faltava a pessoa certa.

Ela tirou a mão debaixo da mão dele.

— Não vai rolar, Augusto — cortou ela. — É melhor a gente só pagar a conta, eu pego o presente da minha mãe, entro num táxi e cada um segue o seu caminho.

***

O telefone de Fernanda tocou. Para a surpresa da moça, era uma ligação de Cristina.

— Oi, sumida — atendendeu Fernanda.

— Amiga, eu tô com um problema e preciso de uma ajudinha.

— Diz aí.

— Um cara me chamou pra jantar e quando a gente tava esperando a conta ele me pediu pra namorar com ele.

— E o que tem isso?

— Vamos dizer que eu… Dei um fora no sujeito e ele não aceitou muito bem.

— Ele fez alguma coisa contigo? — O tom de Fernanda estava mais sério.

— Não, mas lembra que tá chegando o aniversário da minha mãe?

— Sei.

— Eu comprei o presente antes de vir jantar e deixei no carro do sujeito. Agora ele não quer me deixar pegar.

— Onde vocês estão?

— Naquele restaurante que teu pai trazia a gente pra almoçar.

— Chego aí em um minuto, não deixa ele sair até eu dizer.

— Pode deixar — disse Cristina antes de largar o celular.

Ela estava tentando aplicar a variante mais desajeitada e ineficaz do mata-leão no ex-futuro namorado. Teria funcionado se Augusto não fosse uns trinta centímetros mais alto e Cristina soubesse o que estava fazendo.

— Me solta, sua louca — disse ele.

— Só depois de devolver o presente

— Eu não vou devolver nada.

Menos de um minuto depois o telefone de Cristina tocou.

— Oi — disse a moça.

— Deixa ele sair — respondeu Fernanda do outro lado da linha.

Imediatamente Cristina libertou Augusto da semi-imobilização. O rapaz entrou apressado no carro e saiu, mas não antes de colocar a cabeça para fora da janela e gritar.

— SUA DOIDA!

O carro de Augusto mal tinha colocado as rodas na avenida quando foi atingido por outro veículo no lado do passageiro. Ainda desnorteado pelo susto, Augusto olhou para o motorista do outro veículo. Atrás do volante estava uma moça, ela usava um colar cervical, um protetor bucal, igual ao que lutadores usam, e um capacete. Ela tirou o capacete, o protetor bucal, o colar cervical, abriu a porta e desceu do veículo carregando uma marreta. Deu a volta no carro e bateu de leve no vidro do lado do motorista com dois dedos. Augusto abriu.

— E aí, meu velho, tudo certo? — Fernanda estava sorrindo, um sorriso demoníaco demais para transmitir simpatia.

— Mais ou menos — respondeu Augusto ainda tentando processar o ocorrido.

— O negócio é o seguinte — começou ela. — O presente da mãe da minha amiga tá aí no teu banco traseiro e ela tá querendo de volta.

— Ela que compre outro presente.

Fernanda girou a marreta e estourou o vidro da porta de trás.

— Eu podia só pegar o presente, mas eu prefiro que você me entregue. Sabe como é, eu prefiro quando as pessoas colaboram comigo.

Alguns instantes depois Fernanda estava entrando no estacionamento com um sorriso no rosto e a sacola do presente na mão. Ao longe dava para ouvir o som dos pneus de Augusto cantando.

Contos de Segunda #57

    Horácio era um assassino da máfia, provavelmente o pior de todos os assassinos da máfia. Tanto que ele só conseguiu matar um cara… Indiretamente, mas conseguiu. É verdade que Horácio ainda estava no último lugar do ranking de matadores da máfia, mas a diferença entre ele e o penúltimo colocado estava menor… E diminuiria mais um pouco depois daquela noite.

    O telefone tocou na hora do jantar. Horácio tinha acabado de pegar o segundo cachorro quente das mãos do dono da carrocinha quando sacou o aparelho do bolso.

    — Horácio, preciso que você resolva um problema — disse o homem do outro lado da linha.

    — Pode dizer, chefe — respondeu Horácio. Algo dizia que as palavras a seguir tirariam seu apetite.

    — Um dos nossos meninos precisa ser aposentado.

Horácio teria engasgado caso estivesse comendo.

— É só dizer quem vai se aposentar.

— Lorenzo — a voz no outro lado da linha suspirou antes de continuar. — O rapaz perdeu o rumo quando o pai morreu, atualmente mais atrapalha do que ajuda e a polícia já está de olho nele.

— Entendi… Só acho que não sou a pessoa indicada pro serviço, chefe, normalmente eu não cuido dos assuntos internos. Não tem ninguém do RH disponível?

— Final de semana agitado, Horácio, os meninos pediram uma folga e eu não tive como negar.

— Tudo bem, chefe, considere o trabalho feito.

Horácio abriu a lista de contatos e procurou pelo nome de Lorenzo. O telefone chamou três vezes e ele atendeu.

— Oi, Horácio — disse Lorenzo.

— Lorenzo, estou precisando de ajuda pra fazer um trabalho, posso passar na tua casa daqui a quanto tempo?

— Me dá quinze minutos.

— Dez. Chego aí em dez. — sem ouvir a resposta Horácio desligou o telefone.

Dez minutos depois Lorenzo estava parado na frente do prédio onde vivia. Com trinta segundos de atraso o carro de Horácio virou a esquina. Lorenzo entrou no carro sem dizer nada, prendeu o cinto de segurança e só começou a falar depois do carro virar a esquina.

— Qual o serviço, Horácio?

— É só um cara que a gente tem que tirar da jogada.

— Eu não sou muito chegado nessa de tirar gente da jogada, Horácio.

— Só preciso de alguém pra dirigir o carro. Nem sangue você vai ver.

Horácio parou o carro em uma ladeira. A rua descia, cruzava uma avenida movimentada e terminava em outra rua que margeava o rio. Ele puxou a arma do coldre embaixo do braço e verificou se estava carregada antes de guardá-la novamente.

— Vem pro banco do motorista, Lorenzo, eu vou pro banco de trás — disse Horácio saindo do carro e entrando pela porta de trás. Lorenzo obedeceu. — Sabe, Lorenzo, essa nossa profissão é bem arriscada, mas eu nunca senti medo durante o trabalho. Sabe porquê?

— Tem que ser muito doido pra não ter medo, não vejo motivos pra não ter.

— Por que eu ando na linha, faço meu trabalho e não chamo a atenção da polícia. Não dou motivo pro meu chefe se aborrecer comigo… Nada que acontece ou aconteceu comigo durante o trabalho é pior do que nossos empregadores fazem quando estão aborrecidos com alguém.

— Por favor, Horácio — disse Lorenzo tremendo só de imaginar o rumo daquela conversa.

— Não te faltaram avisos, Lorenzo — disse Horácio destravando a arma e colocando na nuca do pobre ocupante do banco da frente.

— Eu tenho família.

— Teus pais falecidos e aquele teu filho que você não assumiu não contam como família.

— O que eu fiz pra merecer isso?

— Além de ter colocado a carga daqueles teus amigos traficantes dentro dos nossos caminhões? Além de ter perdido o nosso último carregamento de armas e ter dado provas pra polícia acabar com a nossa operação na zona portuária? Acredito que fora isso… É, não tem mais nada.

— Por favor, cara — Lorenzo estava chorando. — Quem vai ficar com o meu cachorro? E o orfanato que eu ajudo?

— Por causa deles eu vou te dar uma colher de chá. Eu vou te dar uma coronhada, tirar o freio de mão do carro, você vai cruzar aquela avenida movimentada, vai chegar ao fim da rua e o carro vai cair no rio… Então você vai desaparecer e nunca mais ninguém vai ouvir falar no teu nome.

— Tá falando sério?

— Claro, você só precisa colaborar. Mantenha o volante reto, desça a rua, jogue o carro no rio e ninguém nunca mais vai ouvir falar de você —  a coronhada veio logo depois do final da frase. Lorenzo quase bateu a cabeça no volante, mas o golpe foi fraco o suficiente para fazê-lo suspeitar de algo.

Horácio puxou o freio de mão e pulou pra fora do carro. No dia seguinte os noticiários só falavam do carro que atravessou uma avenida, uma rua e se atirou no rio. Não se sabia a quantidades de ocupantes do veículo, mas não foi achado o corpo de nenhum deles. A suspeita é de que o carro já estava vazio quando caiu no rio.

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