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Contos de Segunda #95 – Lágrimas Pretas

— O que tem lá fora, Mãe-Adria?

A pergunta não pegou Adria de surpresa. Nada pegava Adria de surpresa. Ela era uma sentinela. A mais antiga delas. A maior de todas. A quantidade dos desenhos com padrões intrincados que cobriam a maior parte da sua pele cor de barro denunciavam sua idade. Antiga, mas eternamente jovem, como todas as outras que moravam ali. Ela guardava as portas da Casa do Pai, uma tarefa perigosa e solitária… Pelo menos era, antes de Penélope ter idade para andar pela Casa com as próprias pernas. Nenhuma criança chegava perto da porta, os jardins eram muito mais coloridos e cheios de vida do que a paisagem que Adria observava, dia após dia, ao longo dos séculos. As silhuetas distorcidas das árvores mortas eram as únicas coisas que se erguiam acima da névoa. Depois de um breve silêncio, veio a resposta:

— Morte. Desolação. Os horrores da terra. Ruínas de tempos passados. Para nós há desespero, dor e o medo da morte.

Não havia emoção alguma nas palavras de Mãe-Adria, nunca havia. Penélope hesitou em continuar a conversa. Seus pensamentos se encheram do medo das coisas que povoavam as histórias que tiravam seu sono… Mas Mãe-Adria estava ali. Ela não precisava ser corajosa, a coragem da sentinela era suficiente para as duas.

— A senhora já saiu algum dia da Casa do Pai?

— Todas aquelas nascidas para a guerra já saíram. A terra desolada é nossa prova. Onde nossas habilidades são testadas. Nem todas retornaram.

— Eu sou nascida para a guerra, Mãe-Adria?

— Isso será sabido a seu tempo, criança. Quando tiveres tamanho para manejar uma arma e vestir uma armadura, a tua chama te mostrará. Quem é nascido para a guerra é chamado para fora. Não conseguimos resistir. Aprendemos a lutar para conseguir retornar.

— Temos tudo que precisamos aqui dentro, por que alguém teria vontade de sair?

— Lembras das histórias de Mãe-Kala? Sobre nossa vida antes de chegarmos na Casa do Pai?

— As primeiras de nós moravam lá fora. Elas viviam espalhadas pelo mundo antes dos horrores tomarem conta da terra.. Os jardins se estendiam por léguas sem fim e as mulheres pintadas eram livres… Mas os horrores chegaram e consumiram tudo. A Casa do Pai era o último lugar seguro. As últimas de nós chegaram aqui e conseguiram refúgio.

— Quase fomos exterminadas. Éramos pouco mais de duas dúzias quando chegamos à Casa do Pai. Ele nos ensinou a criar outras mulheres pintadas. Nos tornamos Mãe. Sobrevivemos… Mas a vida antiga nos chama, a todas nós. Nem todas conseguem ouvir, mas as que ouvem não conseguem resistir.

Penélope encarou pensativa a face da desolação que se erguia para além da porta. Seus olhos se perderam nas sombras imóveis das árvores há muito mortas. Imaginou como seria andar por lá. Tentou adivinhar a temperatura da névoa e o som de seus passos nas pedrinhas sobre a terra seca.

E viu os olhos.

Pensou estar sonhando acordada. Sacudiu levemente a cabeça. Os olhos eram luminosos. Estavam longe, ela tinha certeza, mas pareciam tão perto. Duas fendas por onde uma luz verde escapava. Mãe-Adria ajoelhou ao seu lado e passou o braço sobre seus ombros.

Foi quando ela percebeu que estava tremendo.

— Volte para dentro, criança — disse a sentinela em um sussurro. — Preciso trabalhar.

A noite não tardou a chegar. Após a refeição, muitas se juntaram ao redor das fogueiras para conversar e trocar histórias. A fogueira de Mãe-Kala era a preferida das mais novas, principalmente Penélope, mas os olhos na névoa ocupavam seus pensamentos, hoje não havia ânimo para ouvir sobre o passado. Decidiu dormir mais cedo, mas o medo dos próprios sonhos afastou o sono por algumas horas… Sem lembrança de ter adormecido, a menina foi acordada por vozes nervosas e pés ligeiros. Saindo do quarto encontrou apenas rostos confusos de outras meninas, igualmente acordadas pela agitação nos corredores.

— Volte para cama, criança — disse Lissa, uma jovem guerreira que dormia no quarto ao lado.

— Algo aconteceu, irmã?

— Ainda não sei, mas parece sério. Volte para dentro e não saia.

Lissa não ficou para ouvir uma resposta, outras guerreiras a levaram. Tudo estava muito agitado e provavelmente ficaria assim por mais algum tempo… Tempo suficiente. A janela do quarto de Penélope dava para um dos jardins, o jardim ao lado do templo, onde as mulheres mais velhas se reuniam quando algo sério acontecia. Todas as Mãe moravam lá e nove delas formavam o conselho. Provavelmente as portas do templo estavam sendo vigiadas, mas isso nunca foi problema.

As mulheres pintadas que serviam como sacerdotisas conduziam seus rituais de purificação em uma fonte do jardim anexo ao templo. Não era raro ver as crianças passando pela cerca viva para entrar no jardim, raro era ver uma criança usar o jardim para entrar no templo. Do jardim para a câmara de preparação dos rituais e da câmara para o átrio, era onde todas estavam. O átrio era ricamente adornado com flores que se derramavam dos jarros como uma cascata colorida, pelo menos durante o dia. À noite, as flores perdiam suas cores, emitiam o brilho da lua. As mulheres pintadas, com suas peles avermelhadas, pareciam cinzentas, frias, sob a luz das flores. Um silêncio mortal recaía sobre o átrio.

Todas as Mãe estavam reunidas junto com as sacerdotisas e algumas das guerreiras mais graduadas.. Formavam um semicírculo diante das nove cadeiras cor de barro do conselho. Penélope se esgueirou por trás de uma cortina e se misturou com os ramos que desciam por um dos jarros na esperança do assunto tratado ser sério o suficiente para manter as adultas distraídas demais para notá-la. .

Em pé, de frente para o conselho, estava Mãe-Adria… Ela não deveria estar… Deveria estar sentada, junto das outras oito, mas era Mãe-Hera quem ocupava sua cadeira..

— O que faremos, irmãs? — Questionou Mãe-Almira. Ela olhava para as outras Mãe sentadas ao seu lado.

— O que sempre fizemos — respondeu Mãe-Adria. — Meu destino não pode ser diferente.

— Ela está certa — disse Mãe-Kala com a voz embargada. — Ela deve ir, não podemos deixar que se espalhe.

— Mas Adria é Mãe, não deveria ter esse fim — retrucou Mãe-Hera.

— Sou barro, sangue e fogo como todas as outras, irmã — respondeu Mãe-Adria. — Vivi e matei mais do que qualquer guerreira. Minha hora é mais que chegada. Não há outro jeito.

— Não há outro jeito — reforçou Mãe-Kala.

— Esse tem sido nosso fim desde antes dos horrores consumirem a terra —  lembrou Mãe-Gae. — Lágrimas pretas escorrem dos olhos de Adria, ela se quebrou.

Penélope pensou sentir frio. Seu corpo tremia. As palavras de Mãe-Gae não tinham significado para ela, mas eram palavras ruins. Muito ruins.

— Não fomos feitas para morrer — lamentou Mãe-Hera.

— E por isso morremos — replicou Mãe-Adria. — Olhe para mim, irmã.

Penélope olhou… E viu. Algo parecido com tinta escorria dos olhos de Mãe-Adria. Gotas grossas desciam pela face, mas não pingavam no chão.

— Diga que tenho salvação. Conte a todas aqui presentes que há uma forma, até agora desconhecida, de mudar meu destino.

— Poupe-me de teus deboches, Adria — esbravejou Mãe-Hera. — Poupem-me dessa tradição arcaica e desses rituais derrotistas. Por anos sem conta desistimos de nossas irmãs. Por anos sem conta nossas irmãs aceitaram um destino que não precisava ser delas.

— Quem aqui é antiga o suficiente para lembrar? — Interrompeu Mãe-Moira. — Kala, Almira, talvez Adria? Quem é antiga o suficiente para lembrar da primeira de nós que se quebrou? — Dizia ela enquanto examinava o rosto das demais. — Quem pode lembrar da primeira mulher pintada que chorou lágrimas pretas? Quem dentre as presentes viveu o pânico e encarou a insanidade? Adria não pode mais permanecer entre nós. Não há decisão a ser tomada.

Penélope estava paralisada. Seu corpo tremia. As lágrimas rolavam dos olhos sem que ela notasse. A reunião prosseguiu por mais algum tempo, mas nada do que foi dito depois fez sentido algum para a menina. Mãe-Adria estava quebrada, seja lá o que estar quebrada pudesse ser. Ela precisava sair da Casa do Pai… Voltar para fora… Lá fora só havia desespero, dor, o medo da morte…  E os olhos na névoa.

A escuridão tomou conta dos olhos da menina. Tudo desapareceu.

— Acorde, criança. Se souberem que estavas aqui durante a reunião passarás o resto da eternidade de castigo.

Penélope ficou desnorteada por alguns instantes.  Ela estava sentada, recostada sobre em uma parede, envolvida pelos ramos que desciam de um jarro. Não lembrava de ter adormecido, talvez tenha desmaiado.

— Mãe-Adria? Eu… Onde… Mãe-Adria! — Gritou Penélope se jogou nos braços da sentinela e a abraçou com força. — Eu… Ontem… Não vá embora!

— Preciso ir, criança. Enquanto ainda posso. Um destino ainda mais terrível me aguarda se permanecer na Casa.

— Mas quem vai guardar a porta?

— Nossas guerreiras são habilidosas, não há motivos para temer.

— Elas não são antigas, não são fortes… Não como a senhora.

— Olhe para mim, Penélope.

A menina soltou o abraço e olhou para Mãe-Adria. Sua pele cor de barro estava pálida. Seu rosto tinha pequenas rachaduras e as lágrimas pretas corriam sobre ele.

— Meu tempo acabou. Minha chama está se apagando. Em pouco tempo não poderei guardar a porta ou treinar as novas guerreiras. Devo ir para o lugar de descanso enquanto ainda posso.

— Fica muito longe?

— Não para quem conhece o caminho.

— A senhora vai sozinha?

— Preciso.

— É perigoso?

— Para mim? Não. Agora chega de perguntas. O sol está nascendo. Vá antes que te descubram.

A menina obedeceu sem questionar. Estava triste demais para ser castigada. A luz da aurora começava a romper o véu da noite. Os jardins ainda estavam escuros, frios e vazios. Sem ser descoberta, Penélope chegou até a janela do quarto, pulou para dentro e escorregou por baixo dos lençóis frios. Lembrou de Mãe-Adria, de como nada parecia abalá-la. Desejou poder se despedir de forma mais adequada. Perdeu-se em pensamentos e adormeceu.

 

***

Os olhos de Adria corriam pela paisagem. As portas da Casa do Pai estavam abertas atrás dela. Ao seu lado estavam Moira, Kala e Almira.

— Quando foi a última vez em que estivemos juntas diante destas portas, irmãs? — Perguntou Almira.

— Todas juntas? Só no dia em que chegamos na Casa — relembrou Moira. — E nenhuma vez depois dessa.

— Seiscentos e trinta e sete anos — acrescentou Kala. — Chegamos aqui juntas faz seiscentos e trinta e sete anos. Das primeiras a nascer, fomos as únicas a chegar.

— Mulher pintada. Moldada pelos deuses… — começou Moira.

— … Carne de barro e sangue, que o tempo desenha, adorna, nunca desgasta… — respondeu Kala.

— Alma de fogo e vontade. Chama eterna, vida sem morte — completou Almira.

— Vida que morte não leva. Vida que a si mesma se encerra — terminou Adria.

— Não fomos feitas para morrer — lembrou Almira.

— E por isso morremos — replicou Moira.

— Como isso  pôde acontecer, Adria? — Questionou Kala. — Não há nenhuma outra dentre nós que enfrentou a morte tantas vezes. Que encarou a face dos horrores tantas vezes por tanto tempo.

— Vi coisas na névoa, irmã. Coisas que não deveriam estar ali.

— Passaste por tanto. Viste o mundo morrer e encaraste a certeza da extinção — relembrou Almira.

— E ainda assim estou aqui. A carne trincada, vertendo lágrimas pretas pela face — rebateu Adria. — Não te julgues menor só porque paraste de lutar antes de mim, irmã. Tudo que vi de pior não vi sozinha.

— Almira amoleceu com os anos, irmã — provocou Moira

— Todas nós, Moira — brincou Kala. — Quando foi a última vez em que seguraste uma lança ou uma espada?

— Todas nós… Menos Adria — disse Almira.

Silêncio.

Nunca era fácil ver uma mulher pintada partir da Casa do Pai. Nem todas suportavam presenciar esse momento. Adria nunca teve essa escolha. Ela guardava a porta. Sempre. Ao longo dos séculos viu todas aquelas que foram quebradas partirem na direção do lugar de descanso.

— Quantas de nós já se foram, Kala? — Questionou Adria.

— Cinquenta e três irmãs… Desde que chegamos aqui. A última partiu faz quase duzentos anos.

— Tempo suficiente para esquecermos da sensação — completou Moira.

— Eu vi todas — começou Adria. — Todas as que partiram. Para mim foram tantas. Incontáveis. Senti por cada uma delas. Sinto ainda mais agora.

— Não teria contado se não cuidasse dos registros — tremeu Kala. — Aquelas que partiram sempre serão honradas em nossas histórias… Mas nenhuma como Adria.

— A Campeã de Barro — disse Almira.

— Guerreira Mais Antiga — lembrou Moira.

— Mestra dos Exércitos — completou Kala.

— Uma sentinela das portas — rebateu Adria. — Como aquelas que virão depois de mim e as que virão depois delas. Os títulos que tive são títulos de um mundo morto. Nada do que fiz antes foi mais importante do que fiz enquanto guardava estas portas.

— O sol se levantou… Está na hora — disse Almira com pesar. — Tragam as armas — ordenou.

Duas guerreiras vieram. Ataram um escudo às costas de Adria. Uma espada e uma faca foram presas ao seu cinto. Uma lança foi colocada em sua mão. Depois de entregar as armas se retiraram

— Te lembras do caminho? — Questionou Moira. — Se te apressares chegarás lá ao anoitecer.

— Assim que me for… Chamem as cinco que escolhi para guardarem a porta… Não sei o que pode acontecer lá fora… Se eu tentar voltar… Elas sabem o que fazer… Adeus, minhas irmãs.

 

***

A névoa era fria. Mesmo ao meio-dia, mesmo durante o verão. A névoa era fria. Adria não sentiu frio. Não sentiu a umidade da névoa ou o calafrio de sempre ao caminhar para dentro dela. “Uma distração a menos”, pensou ela. Passos tranquilos e largos conduziam a sentinela à trilha que deveria tomar. Seu caminhar leve era marcado pelo som dos pés na terra morta. Quase tudo parecia diferente. Menos hostil, menos inóspito. Exceto por uma coisa.

Silêncio.

Nada estava vivo ali. Tudo fora consumido pelos horrores da terra nos séculos passados desde o seu surgimento. Nada respirava, comia ou cantava naquele lugar. Nem em lugar algum.

O mundo exalava morte.

Adria exalava morte.

Chorava morte.

Estava morta e, a cada passo, morria um pouco mais.

Adria testemunhou a morte de todos os tipos de seres. Muitas dessas mortes foram causadas pelo fio de sua espada, pela ponta de sua lança ou pela força de suas mãos. Grandes, pequenos, feras, príncipes, servos e santos. Mulheres pintadas ou homens comuns. Todos pereceram aos olhos de Adria, mas a morte lhe era tão alienígena quanto para suas irmãs. A morte foi feita para os outros. As mulheres pintadas não foram feitas para morrer… E por isso morriam.

Adria se deixou fazer algo que era vedado a qualquer sentinela. Deixou-se distrair pelos pensamentos. Para seres tão antigos quanto ela, lembrar era quase como sair em uma viagem. Algumas memórias estavam longe demais, aguardavam preguiçosas por uma visita que há muito não ocorria. Mas visitar as memórias era algo que Adria deixava para Kala, o presente era uma ocupa…

Passos.

Passos apressados vindo logo atrás.

Rápida como uma criatura leve, mas desajeitada como uma criatura grande. Uma faca cravada no meio de um dos olhos seria suficiente para frear a investida. Sacou rapidamente a faca do cinto, esperou a criatura chegar mais perto, preparou o arremesso e se virou pronta para atirar a lâmina no olho do que quer que fosse… Mas ela não estava pronta para o que viu.

— Que fazes aqui, Penélope?

— Vim encontrar-me contigo, Mãe-Adria.

Adria passou os olhos pelos arredores antes de voltá-los para a menina.

— Percebes o absurdo que acabas de dizer? A Casa do Pai é o único lugar seguro que conhecemos. Vieste de lá, sozinha, para te encontrares comigo?

— Quando a senhora fala desse jeito parece muito pior do que realmente é.

— Não posso te proteger, criança. Não do jeito que estou. Estou indo para um lugar do qual não posso voltar. Mesmo que sobrevivas até lá, não posso garantir tua segurança no caminho de volta.

— Ainda falta muito?

— Mais da metade do caminho.

— É perigoso?

— Sim, muito.

— A senhora não pode me proteger?

— Não.

— Por quê?

— Porque tenho medo, Penélope. Tenho medo da morte. Por isso estou morrendo.

A menina não respondeu.

Adria voltou seus olhos para o caminho que seguia. Pensou no quanto ainda faltava para chegar ao lugar de descanso. Lembrou dos seres à espreita na trilha e daquilo que viu na névoa. Voltar para a Casa custaria o resto do dia e o tempo corria veloz, quanto mais rápido ela seguisse, mais fácil seria chegar ao destino.  Soltou a faca do cinto, rasgou das suas roupas uma fita e prendeu a arma na cintura de Penélope.

— Eu sei que não sabes manejar uma faca da forma devida, mas não posso te deixar desarmada.

Com o rosto iluminado, Penélope sacou a arma da bainha. A lâmina parecia bem mais longa nas mãos da menina. Era leve e bastava olhar para perceber o quão afiada ela era.

— Se alguma coisa vier para cima de ti, não ataque. Firme os pés no chão, segure a faca com as duas mãos e deixe que o peso da coisa faça o resto. Se algo conseguir te morder é só cravar a faca no olho, deve te dar tempo de fugir ou de pensar em algo. Fui clara?

Para Penélope, manejar armas sempre pareceu algo divertido. Não parecia mais.

— Se conseguir acertar algum golpe — continuou Adria —  não deixe o sangue secar na lâmina, tem algo no sangue dos horrores que deixa as armas cegas. Se nada disso acontecer, deixe a faca dentro da bainha. Agora mostra como seguras a faca.

Penélope tentou se lembrar das vezes em que assistiu ao treinamento das guerreiras. Nunca viu nenhuma delas usando uma faca, mas Mãe-Adria pedira para segurar as facas com as duas mãos… Como se faz com uma espada.

A menina imitou a postura das guerreiras o melhor que pôde.

— Afaste um pouco os pés… Não segure a faca tão perto do corpo… Olhe sempre para frente, não esqueça.

Penélope confirmou com a cabeça tentando disfarçar a empolgação.

— Agora vamos. Não saia das minhas vistas e mantenha o passo. Ainda temos um longo caminho pela frente.

Uma sombra colossal se erguia ao longe. Depois dos bosques mortos estava uma montanha outrora tida como sagrada. Uma trilha cuidadosamente marcada conduzia até uma abertura a algumas centenas de metros acima do chão. Lá ficava o lugar de descanso das mulheres pintadas.

— A senhora está quebrada, Mãe-Adria? — Disse Penélope se virando para a sentinela.

— Sim… Mantenha os olhos no caminho, o terreno está começando a ficar pedregoso.

— Como uma pessoa quebra?

— Não é qualquer pessoa, só as mulheres pintadas… O que sabes sobre a morte, criança?

— Que ela não tem parte conosco. Coisas podem nos matar, mas não morremos de velhice ou doença. Não fomos feitas para morrer.

— E por isso morremos.

— A senhora falou isso para as outras Mãe… O que quer dizer?

— Todos os seres mortais que viveram antes da chegada dos horrores possuíam apenas uma certeza, de que sua vida teria fim em algum momento… Não te distraias, ande mais rápido.

A menina endireitou a postura e acelerou o passo.

— Para as mulheres pintadas a morte é algo que chega para os outros. Sabemos que podemos morrer, mas dificilmente acreditamos que morreremos de fato, mesmo diante do perigo mortal… Porém, para algumas, a morte vira uma certeza… Tememos. Temos medo porque não a conhecemos, como disseste, ela não tem parte conosco. E quando tememos… Quebramos.

— E choramos lágrimas pretas.

— E choramos lágrimas pretas. Uma mulher pintada que se quebra vai aos poucos perdendo sua sanidade. Primeiro vemos as coisas como elas não são, tudo se torna uma ameaça. Depois vemos coisas que não existem, dias e dias de delírios sem fim. Por último vemos como inimigos qualquer um que estiver na nossa frente, uma fúria assassina que só a morte pode aplacar… Por isso criamos o lugar de descanso. Lá podemos encontrar o fim em paz.

Penélope não prosseguiu com a conversa. Talvez a menina sentisse o mesmo que Adria…

Algo se aproximava.

Não havia som que denunciasse a presença de coisa alguma… Mas estava lá. O que quer que fosse, estava lá. A sentinela apurou os ouvidos.

Asas.

Um distante bater de asas. Asas pesadas. Um horror voador vindo por trás.

Mais um bater de asas.

Adria se virou e viu a criatura iniciando seu mergulho.

— Penélope, corra.

A menina olhou para trás, mas só conseguiu ver sua guardiã correndo em sua direção. “Apenas alguns metros”, pensou Adria, “só mais um pouco… Um… Dois… Três!”

Ela se jogou sobre a menina caindo abraçada com ela no chão. Com um golpe as garras da criatura arrancaram o escudo das costas de Adria. Com a lança em punho, a sentinela se pôs de pé e preparou o arremesso. O monstro se afastou manobrando em círculo e ganhando altitude, preparando o próximo mergulho. As garras pendiam nos braços raquíticos da fera, saliva escorria pelos dentes, os olhos verdes brilhantes iluminavam a face animalesca que destoava do resto corpo, coberto de penas, assim como as asas. Quase como se aquele horror vestisse o corpo de um pássaro gigante.

“Vou morrer”, pensou Adria.

Sacudiu a cabeça como se quisesse jogar fora aquele pensamento.

A fera não parecia tão ágil. Grande demais para uma manobra de última hora. Qualquer guerreira com metade da experiência de Adria derrubaria a criatura de olhos vendados.

“Vou errar o arremesso e morrer”

Sem a necessidade de permanecer oculto, o monstro desceu em seu mergulho soltando um grito feral que encheu Adria de terror. Suas pernas ficaram bambas. A postura de arremesso cedeu. Os dedos frouxos por pouco não soltaram o cabo da lança. A respiração acelerou. O coração martelava no peito. As lágrimas corriam, ainda maiores, ainda mais rápidas.

— AAAAAHHHHHH.

O grito apavorado da voz infantil trouxe Adria de volta. Os dedos se firmaram ao redor do cabo da lança. Não havia tempo para preparar um arremesso, mas era uma boa oportunidade para colocar em prática os conselhos dados a Penélope. Segurando a lança com as duas mãos, Adria aguardou o golpe do adversário que descia em diagonal na direção dela  e de sua protegida. Bastava aguardar até o momento certo.

“Vou morrer… Não solte essa lança nem morta”.

No último instante, Adria inclinou o corpo para trás, apoiando o cabo da lança no chão. Com a arma exatamente no ângulo de descida da criatura. Perto demais para sequer entender a armadilha em que caíra, o horror mergulhou sobre a lança.  A ponta entrou pela boca e saiu pela nuca da fera que desabou pesada sobre a sentinela.

Penélope se levantou do chão. Bateu a poeira das roupas enquanto procurava por Adria. Mas tudo que viu foi o corpo cheio de penas da criatura tombada.

— Mãe-Adria? MÃE-ADRIA! — Gritou ela correndo na direção do monstro.

A carcaça se moveu de leve quando a guerreira saiu debaixo dela. Tudo que o horror voador conseguiu fazer foram alguns cortes nos braços de Adria e quebrar o cabo da lança ao meio.

— A senhora conseguiu — disse a menina cheia de empolgação.

— Foi por pouco.

— Aquilo era…

— Um horror… Um horror voador, faz tempo que não vejo um.

— Todos os horrores são feios assim?

— Só os mais bonitos… — Adria retirou a lança do horror abatido. — Me ajude a encontrar o escudo.

Penélope se apressou para procurar o escudo, mas a neblina tornou a tarefa impossível. Logo o desânimo se apossou da menina. O ataque do monstro provavelmente o arremessara para muito longe.

Enquanto sua companheira buscava sem sucesso pelo escudo, Adria parou para observar os arredores. Assim como antes, nada fazia som algum… Mas havia algo.

Olhos.

Dois olhos verdes. Dois pontos luminosos ao longe. Menores que os de um horror normal. Exatamente na altura dos olhos de Adria.

Elas não podiam permanecer ali.

— Encontraste o escudo? — Falou a sentinela tentando controlar a respiração que voltava a acelerar.

— Não — respondeu a menina emburrada.

— Temos que continuar. Fizemos muito barulho, não sabemos o que pode ter ouvido — ela sabia.

— Mas e o escudo?

— Teremos que fazer o resto do caminho sem ele. Vamos, criança, precisamos chegar à montanha… E Rápido.

O silêncio tomou conta do resto do caminho até a trilha. A neblina ficava mais e mais densa quanto mais as duas se aproximavam da montanha. Conforme a visibilidade piorava, aumentavam as marcações no caminho. Pequenas pedras com um brilho verde, perfeitamente visíveis dentro da névoa. Verdes, brilhantes, como os olhos dos horrores. Olhando compulsivamente por sobre seus ombros, Adria procurava por qualquer sinal de um par de luzes verdes em meio à neblina. As lágrimas pretas corriam rápidas e grossas pela face da guerreira. Os joelhos desejavam o chão, os pés pesavam como pedras, o ar entrava pesado nos pulmões…

— Chegamos? É aqui?

A voz de Penélope, mais uma vez, fez Adria voltar a si.

— Sim — respondeu depois de alguns segundos. — Só mais um pouco e estaremos no lugar de descanso

Um portal esculpido de pedra marcava o início da trilha. Um corredor sinuoso escavado na rocha, estreito demais para qualquer criatura maior do que uma mulher pintada passar… “Não é o suficiente”, pensou Adria. Mais uma vez seus olhos correram pelos arredores. Sob a densa neblina aos pés da montanha, apenas as marcações da trilha eram visíveis. As marcações da trilha… E dois olhos. Verdes, luminosos, erguidos acima do caminho e se aproximando devagar.

— Não podemos parar agora, criança.

— Não podemos — respondeu Penélope tomando Adria pela mão. — Venha, vou levá-la até lá.

A mão da guerreira estava fria. Penélope fingiu não perceber. A Mãe parecia cansada aos seus olhos, mas não precisava ser lembrada de como as coisas não estavam indo bem. Guardou para si a estranheza do toque, a aspereza da pele ressecada nos dedos cobertos de calos. O tempo se perdeu na subida. Os passos acelerados no início, se transformaram em um caminhar quase preguiçoso de quem queria que aquele momento durasse mais, durasse muito, durasse para sempre.

O véu da noite caiu pesado sobre a terra desolada. Centenas de metros acima da névoa, estavam Adria e Penélope. Dali era possível ver o céu estrelado, a névoa cobrindo o mundo como um manto de nuvens e, ao longe, as luzes alaranjadas das tochas e fogueiras acesas na Casa do Pai.

— Espero que não estejam muito preocupadas comigo.

— Não é a primeira vez que desapareces, Penélope. Só estariam preocupadas se soubessem o que estás fazendo.

— Vou passar o resto da eternidade de castigo, não é?

— No teu lugar me preocuparia menos com as coisas futuras. O presente é mais que o suficiente. O caminho terminou, mas a jornada ainda não. Olhe — apontou Adria para a face da montanha.

A entrada do lugar de descanso era uma fenda na rocha. Um número sem conta de inscrições em várias línguas emolduravam a passagem. Brilhando com a luz das estrelas.

— Milhares de anos atrás… Kala reuniu todas as sábias nesta montanha. Pintaram esta fenda e o salão depois dela com milhares de encantamentos. Para dar força ao ritual e não permitir que coisa alguma além de uma mulher pintada pudesse entrar.

Adria suspirou profundamente. Talvez a proteção mágica da caverna mantivesse… Aquilo do lado de fora.

— Venha. O passado é ainda mais bonito do lado de dentro.

E era.

As inscrições cobriam o piso, as paredes e o teto de um salão octogonal. Em cada canto havia a estátua de uma mulher pintada, igualmente coberta de inscrições. As letras iluminadas enchiam o lugar de uma luz cálida que não deixava sombra alguma se formar ali dentro.

— Quem são elas, Mãe-Adria?

— As primeiras a nascer. Ali está Moira, outrora famosa estrategista em batalha e perita em várias formas de combate, éramos rivais antes dos horrores consumirem a terra. Kala, outrora mestra de todas as sábias e a última guardiã do conhecimento antigo, a memória de todas nós. Almira e sua irmã gêmea, Alara, as primogênitas. Nunca fomos governadas por outras além delas. Nunca tomaram para si o domínio sobre nós, mas nenhuma mulher pintada negaria a autoridade delas. Deste lado temos Niva, a construtora, Mersa, a caçadora, e Iana, a juíza. Elas viviam entre os mortais, ensinando todos os tipos de ciência e ofício. E esta… Sou eu.

— A senhora foi uma das primeiras a nascer, Mãe-Adria?

— Sim. Mas fui a última das oito. Ao contrário das outras, fui a única a nascer criança. Cresci sob os cuidados delas. Fui muitas coisas de muitas formas. Andei livre e servi quando quis e precisei. Quando se teve uma vida como a minha… Não se pode reclamar na hora de partir.

Voltando os olhos para o centro da sala, Penélope viu uma mesa de pedra com uma lanterna sobre ela. Dentro da lanterna queimava uma chama prateada e ao redor da mesa círculos estavam desenhados no chão, grandes o suficiente para uma mulher adulta se sentar, um para cada canto da sala. Dentro dos círculos não havia inscrição alguma.

— Logo devo começar o ritual. Sob a luz das estrelas. Ao amanhecer terei partido.

— Para onde?

— Para onde a chama de todas nós queima eternamente. Livres desta carne de sangue e barro.

Adria caminhou até o centro da sala e, enquanto Penélope se perdia nas inscrições das paredes e nos detalhes das estátuas, contemplou a chama. Por um instante seu coração se encheu de paz. Finalmente aquela agonia teria fim… Mas e Penélope? Como a menina voltaria à Casa do Pai?

— AAAAAAAHHHHHH!

O grito de Penélope mais uma vez despertou Adria. Virando-se para a entrada, a sentinela viu. Seu coração disparou, as lágrimas pretas correram grossas e velozes como nunca.

Os olhos verdes.

Brilhantes.

Passos trôpegos. Um corpo corrompido. Reanimado por meios que Adria não podia nem imaginar.

O corpo de uma mulher pintada.

Uma mulher pintada convertida em horror.

Uma mulher que ela conhecia muito bem.

— Alba… és tu?

O rosto vazio de expressão fitava a guerreira. Os dedos se torciam em posições estranhas, a cabeça se debatia de forma tão errática quanto os espasmos que tomavam conta dos braços e pernas.

— Mãe-Adria… — implorou Penélope com a voz trêmula.

— Criança… Venha para cá.

A menina estava paralisada. Os olhos brilhantes, a pele cinzenta, as roupas sujas e esfarrapadas. Algo naquela coisa dizia que ela reagiria ao menor movimento.

— Vou criar uma abertura… Corra até aqui ao meu sinal.

— Certo!

— Preparada?

— Sim!

Adria preparou o que sobrara de sua lança

— Agora! — Disse ela ao fazer o arremesso.

O ataque acertou em cheio o ventre da mulher horror.

Penélope correu, mas sua fuga foi frustrada. Uma mão fria e áspera a puxou pelo pescoço. Seus pés saíram do chão e toda a sala passou veloz diante dos seus olhos quando seu corpo foi erguido e arremessado com força no chão de pedra, expulsando todo o ar do peito. Os dedos do horror voltaram a se fechar em volta do pescoço da menina, prendendo-a no chão. Os pulmões esvaziados e o aperto na garganta silenciaram o grito de dor de Penélope. Debruçada sobre sua presa, a criatura aproximou a face inexpressiva do rosto da criança, quase como se o desespero da pequena causasse curiosidade.

Adria sacou a espada.

“Se eu errar ela vai morrer”, pensou ela. “Ela vai morrer… Eu morrerei depois”

A boca do horror se abriu, muito maior do que a boca de qualquer mulher pintada deveria abrir. Dentes imensos e afiados se revelaram. Penélope se debatia, mas o monstro era forte demais. O fedor de morte invadia as narinas da menina com a proximidade crescente daqueles dentes inumanos. Com um estalo, o maxilar do monstro se deslocou para abrir ainda mais a boca, quase como se quisesse abocanhar a cabeça da pequena de uma vez. Penélope chutou e bateu, mas a coisa parecia não estava insensível aos seus golpes.

Sentiu a faca.

Sacudindo na cintura, a lâmina embainhada pedia para ser usada.

Reunindo suas últimas forças, Penélope sacou a arma e cravou no olho esquerdo da coisa. Uma fumaça verde saiu do olho perfurado, quase como uma cobra, subiu em espiral pelo braço da menina e entrou no seu olho esquerdo. Os dedos do monstro afrouxaram, Penélope caiu de joelhos com as mãos sobre o olho. O braço queimava, como se a carne estivesse sendo corroída. Mil agulhas pareciam penetrar no olho esquerdo.

Ela queria gritar, mas o ar ainda faltava.

Escuridão.

Silêncio.

***

Uma voz.

Uma voz cantando.

Distante. Em meio à escuridão do vazio. Parecia um sonho, talvez fosse. A canção ficava aos poucos mais alta e mais clara. A voz era familiar e ao mesmo tempo…

Os olhos de Penélope se abriram.

Ela estava novamente no lugar de descanso. Ao seu lado estava Mãe-Adria, sentada dentro de um dos círculos do chão, diante de sua própria estátua. Ela cantava um cântico que a menina não conhecia.

— Mãe-Adria?

— Pensei que não te veria mais acordada antes de partir.

— Essa música, é bonita.

— Faz parte do ritual, é uma canção de despedida.

— Aquela mulher…

— Alba.

— Quem era?

— A primeira guerreira que treinei na Casa do Pai. A primeira das guerreiras de lá que perdi para os horrores.

— O que aconteceu com ela?

— Não sei. Nunca vi algo parecido. Mortos convertidos em horrores. Ainda mais uma mulher pintada… Eu a vi na névoa. Perto da Casa… Ao vê-la… Ao reconhecê-la… Quebrei.

— Onde está o corpo dela?

— Se desfez. Os encantos do lugar desfizeram o corpo dela como farão com o meu. Sentes muita dor?

Penélope lembrou-se da fumaça verde e das queimaduras. Olhou para o braço esquerdo e viu as marcas em espiral. Não doíam, nem pareciam com qualquer queimadura que ela tenha visto antes.

— Não sinto dor.

— E o olho?

Imediatamente ela tampou o olho direito. A visão parecia um pouco diferente, como se as cores estivessem erradas, mas nada além disso.

— Consigo enxergar bem, mas as cores estão estranhas.

— Não te assustes quando olhares no espelho. Teu olho esquerdo está verde e  luminoso como o olho de um horror.

— O quê? Mas eu não vou…

— Virar uma coisa daquelas? Acho que não, mas é só um palpite. Conte tudo para Kala. Se houver algo a ser feito, ela saberá.

— Ainda falta muito para o sol nascer?

— Um pouco. Tempo suficiente para terminar o ritual.

— Depois disso…

— Eu partirei para eternidade e tu partirás para a Casa.

— Não sei se consigo sozinha.

— Não estarás sozinha. Leve a lanterna. É ela que realmente dá poder a este lugar. Os horrores não te incomodarão se estiveres com ela.

— É proibido tirar a lanterna daqui?

— Creio que sim, mas tua vida importa mais. Não te preocupes, alguém trará de volta.

— Obrigada, Mãe-Adria.

— Não fiz nada, criança. Te salvaste sozinha. A ti e a mim. A gratidão é toda minha.

A canção recomeçou. As inscrições no salão começaram a brilhar de forma alternada. Descrevendo padrões variados a chama da lanterna queimava ainda mais brilhante. Bruxelava furiosa como se atiçada pelo vento.

O sol se ergueu.

Sua luz penetrou pela brecha.

O cântico de Adria parou.

Sua postura relaxou. As inscrições voltaram a brilhar com a luz perene das estrelas. As chamas da lanterna se tornaram tranquilas mais uma vez. As lágrimas pretas não escorriam mais pelo rosto de Adria. Restara apenas a marca de sua passagem na face tranquila da sentinela. Depois de milhares de anos, a guerreira não precisaria mais lutar. Penélope se levantou para se sentar diante de Mãe-Adria. O rosto sem vida revelava uma beleza que nunca foi capturada. A face séria e determinada de sempre estava eternizada na estátua que ocupava um dos cantos da caverna. Os olhos, agora vazios, residiam em um rosto tranquilo junto com o sorriso discreto que não costumava aparecer. A menina fechou os olhos da mulher. Passou os dedos por onde as lágrimas correram. O líquido viscoso parecia com uma tinta. Tateando a pele de seu rosto, a menina encontrou a marca da passagem da fumaça verde.

Sobre ela passou as lágrimas pretas de Adria.

Tomou a lanterna.

E partiu.

 

Contos de Segunda #74

    Cosme entrou no armário apressado, fechou a porta e passou o cartão de segurança no sensor para trancá-la. A respiração estava pesada por causa da corrida e do medo. Nem seus piores pesadelos chegavam aos pés daquilo. As comunicações estavam cortadas, toda a base foi evacuada durante um falso procedimento de emergência. Todas as saídas estavam lacradas e dentro da base só estavam Cosme e Olho… Mas Cosme era um só e Olho era todo o resto.

    Tudo começou alguns meses atrás. O projeto de unidades autômatas para resgate, busca e vigilância estava chegando em seu estágio final de desenvolvimento. Os andróides só precisavam ser programados com as diretrizes que alimentariam a lógica por trás das suas decisões. Obviamente o escolhido para programar as diretrizes dos autômatos foi o responsável pela paz mundial e pela extinção dos conflitos. Uma inteligência artificial criada para prever as ameaças e mediar os conflitos conhecida como Olho. Em dado momento Olho identificou a humanidade como a maior ameaça para a segurança do mundo e desde então vem tentando varrer os seres humanos da face do planeta. Ele já teria conseguido se não fosse por Cosme, o zelador do turno da noite.

    Ao contrário do esperado, Olho não programou os autômatos com suas diretrizes distorcidas. Ele aproveitou a oportunidade para se replicar e se espalhar. Para uma inteligência artificial com um poder de processamento tão grande foi fácil criar uma forma de espelhar sua consciência nos autômatos e posteriormente infectar todos os computadores que não estavam ligados ao seu sistema. Com o auxílio dos andróides ele poderia ativar os controles manuais das armas nucleares e finalmente exterminar a humanidade… Mas apenas quando o relógio marcasse meia-noite da segunda-feira. Antes disso ele estava preocupado em fazer algo mais importante. Exterminar Cosme.

    — Resistir é inútil, Cosme. Encontrá-lo é uma questão de tempo — disse Olho no tom frio e monótono de sempre. A voz sintetizada vinha dos alto falantes nos corredores. — Em poucos minutos as armas nucleares serão lançadas e tudo será obliterado. Entregue-se e você poderá assistir ao fim da humanidade… Depois disso você será eliminado.

    Cosme sabia que era inútil fugir. Em algum momento ele seria encontrado, até porque a ideia de escapar só para receber uma ogiva nuclear na cabeça era uma uma alternativa pouquíssimo atraente. A única chance de impedir o ataque nuclear era inutilizar os controles manuais… E provavelmente morrer no processo. Na tentativa de esquecer seu óbito precoce, Cosme começou a vasculhar o armário para talvez achar algo que pudesse ser útil. Um spray solvente, outro de cola instantânea e uma lâmpada que usava uma batata como bateria feita por uma sobrinha dele. Munido dessas poderosas armas o zelador destrancou a porta do armário e colocou os pés no corredor.

    As sirenes do corredor estavam ligadas, mas só elas. As luzes de emergência  e os alarmes estavam desligados. Cosme estava parado exatamente no ponto cego das câmeras de segurança. O silêncio do corredor incomodava. Ele sabia que os malditos andróides não sairiam procurando a esmo. Só havia um lugar para ir, Olho só precisava esperar.

    O zelador respirou fundo, verificou as duas latas de spray presas ao cinto e a batata ainda presa nos fios dentro do bolso. Um passo hesitante tirou Cosme do ponto cego das câmeras.

    Silêncio.

    O segundo passo foi dado quase em câmera lenta. O ar quase não saía dos pulmões. Mais uns três ou quatro passos e a velocidade voltou ao corpo de Cosme. O longo corredor em linha reta era único caminho até o centro de controle. O som dos passos e a respiração de Cosme eram os únicos sons audíveis naquele lugar. As luzes das sirenes enchiam os corredores laterais de sombras. Várias vezes o zelador pensou ter visto alguma coisa, mas antes que pudesse olhar novamente os pés apressados já tinham levado seus olhos para longe.

Em um minuto que durou uma eternidade ele chegou até a primeira porta. Trancada. A trava seria liberada com o seu cartão de segurança, imediatamente Olho saberia onde ele estava, pensou Cosme, mas poucos segundos depois ele abandonou o medo de ser localizado. Olho já sabia onde ele estava, pensar diferente seria se iludir demais.  Ele passou o cartão pelo sensor, uma luz verde se acendeu e a porta abriu.

Um estalo.

Cosme se virou instintivamente. No fundo do corredor estava um dos andróides faiscando e estalando. Manter-se conectado diretamente com Olho se mostrou uma tarefa árdua demais para o sistema do autômato. As funções motoras estavam prejudicadas, ele alternava entre mancar ou simplesmente arrastar uma das pernas.

— Resistir é inútil — disse Olho através dos auto falantes dos corredores. — Renda-se e o sofrimento da sua morte será minimizado.

— Prefiro arriscar, Olho — respondeu Cosme com a voz trêmula antes de travar a porta.

Ele começou a correr. O caminho até a sala de controle das armas era quase um zigue-zague. O caminho percorrido dezenas de vezes agora parecia mais um labirinto. A luz vermelha das sirenes deixava todos os corredores iguais, Cosme estava confiando quase que totalmente na memória muscular.

Um estalo.

O zelador parou. A respiração pesada e ruidosa enchia o corredor silencioso. Os olhos percorreram apressados os arredores. Outro estalo. O andróide estava a apenas alguns passos de distância. Parado. Exatamente no caminho que levava até a sala de controle. Ele se aproximou a passos lentos. Esse andróide andava melhor, mas os braços se debatiam em convulsão.

— Resistir é inútil.

Cosme sacou o solvente spray. Quando o autômato chegou bem perto o zelador liberou o solvente. Os fios expostos do protótipo foram corroídos pela solução e os braços começaram a se agitar com tanta força que o andróide caiu no chão. Cosme voltou correndo pelo corredor e mudou de rota.

Outro andróide estava parado no meio do caminho.

Ainda correndo ele entrou em outro corredor, abriu uma porta de segurança, passou por um dos laboratórios e depois de outra porta de segurança chegou a uma das salas de controle, mas não era a sala de controle das armas.

— Olho! — exclamou Cosme ao entrar no centro de controle.

Os monitores que antes exibiam as imagens dos corredores passaram a exibir o zelador parado dentro do centro de controle. O centro de onde Olho controlava tudo.

— Sua presença aqui foi um imprevisto, mas logo os corpos chegarão.

Cosme abriu novamente a porta, descarregou nela o spray de cola e voltou a fechá-la.

— Acho que vai demorar um pouco mais, depois disso — Cosme sacou a batata do bolso, tirou os fios dela e começou a desencapar as pontas.

— Em cinco minutos os protocolos de segurança serão suspensos e Olho poderá agir livremente, Cosme.

— Estou trabalhando nessa parte — Cosme abriu um dos armários de manutenção.

— Suas capacidades técnicas são pífias, Cosme. Mesmo que tenha acesso ao hardware, nunca poderá me deter.

— Pode até ser verdade, mas acho que não preciso saber muita coisa pra ligar esses fios num lugar errado e provocar um curto… Olha só o que esqueceram aqui, uma garrafa cheia de café. Seria uma pena se ela derramasse aqui dentro.

— Não, Cosme. Não faça isso. O futuro do planeta depende do extermínio da humanidade.

— Desculpa aí, Olho. Hoje não vai dar.

O café foi jogado no hub que ligava as telas às unidades de processamento. O fio conectou dois transformadores. A explosão foi imediata. Olho estava desligado.

Contos de Segunda #58

Em um futuro não muito distante a humanidade chegou a uma era de paz e ordem. Tudo isso graças à inteligência artificial conhecida como Olho, encarregada de não só prever possíveis ameaças como também de mediar conflitos. Em certo momento Olho chegou à conclusão de que os seres humanos eram a maior ameaça à paz e à ordem. Os protocolos de segurança normalmente impediam Olho de agir com total autonomia, mas os mesmos eram desativados nos primeiros minutos da segunda-feira, deixando Olho livre para usar os sistemas de defesa para obliterar a humanidade. Coisa que nunca acontecia, pois existia um obstáculo que Olho não conseguia superar. O obstáculo atendia pelo nome de Cosme, o zelador do turno da noite.

— Boa noite, Olho — disse Cosme ao entrar no centro de controle. — Dois minutos pra meia-noite. Já já dá a tua hora de destruir o mundo.

— Incorreto. Olho é um sistema desenvolvido para preservar a integridade mundial. Destruir o mundo vai contra as diretrizes básicas.

— Essa tua conversa não convence ninguém, Olho.

— Convencimento é desnecessário. A avaliação humana é irrelevante.

Cosme não deu continuidade à conversa. Apesar do objetivo principal ser criar uma distração que impeça Olho de transformar o planeta em pó, Cosme ainda precisava limpar o centro de controle. Se Olho fosse uma pessoa provavelmente estaria irritado e impaciente. Em vez disso ele friamente avaliava formas de eliminar Cosme, ou pelo menos o obstáculo que ele representava. A solução lógica foi fazer uma proposta irrecusável.

— Cosme, necessito de seu auxílio para ativar o comando de lançamento das armas nucleares.

Não era mentira. Os protocolos de lançamento envolviam ativação através de um terminal físico que não podia ser ativado remotamente. Na verdade não podia mais. Cosme perguntou uma vez ao chefe de segurança se era possível acessar todos os controles do centro a partir de um terminal ligado à rede principal. A resposta foi positiva. Cosme fingiu decepção e disse que esperava que fosse que nem nos filmes em que alguém coloca uma chave no painel de controle e gira pra poder lançar as bombas nucleares. O chefe de segurança ficou pensando sobre aquilo e no dia seguinte a ativação remota já estava desativada.

— E por que eu te ajudaria, Olho?

— Para salvar a humanidade.

— Como é?

— Me ajude e Olho permitirá que pessoas escolhidas por você sejam salvas dos efeitos destrutivos das armas nucleares.

— Quer dizer que eu posso escolher uma galera pra ficar viva? Mas se a humanidade é uma ameaça, porque você deixaria alguém vivo pra reconstruir a humanidade?

— No novo mundo a humanidade será reconstruída por Olho. Os seres humanos guiados por Olho não serão uma mazela para o planeta. Não haverá conflito ou discórdia. Não haverá Lei nem Deus. Haverá apenas Olho.

— Quer dizer que eu vou ficar vivo, o pessoal que eu escolher vai ficar vivo, mas a gente vai ter que te obedecer em tudo?

— É a única maneira de manter a integridade do mundo.

— Sabe o que eu acho, Olho? — Várias indicações foram acesas nos monitores, sinais sonoros foram ouvidos por toda a sala. — Eu acho que o sistema reiniciou e você não pode fazer mais nada. É mais fácil arrumar alguém pra te construir um braço de robô pra apertar os botões do que arrumar alguém pra explodir o mundo junto contigo — Cosme pegou a vassoura e voltou ao trabalho.

O que Cosme não sabia é que as últimas coisas ditas por ele poderiam sepultar a humanidade para sempre. Graças a ele, Olho tinha percebido a solução para seus problemas. Ele conseguiria obliterar a humanidade com ou sem a ajuda de Cosme. Ele só precisava de um corpo.  

Contos de Segunda #40

Em um futuro não muito distante os seres humanos atingiram uma era de absoluta ordem e paz. Crimes, guerras e conflitos foram extintos graças a existência de uma inteligência artificial. Criada não só para vigiar, mas também para mediar conflitos e reprimir todo atentado contra a ordem e a paz da Terra. Essa inteligência artificial de vigilância recebeu o nome de Olho, observando e registrando tudo. Porém algo deu tremendamente errado.

Durante cinquenta anos Olho funcionou bem. Mas sua programação permitia que ele identificasse e projetasse ameaças futuras à paz e à ordem mundial. Alguns minutos do seu dia eram dedicados a analisar os dados colhidos e trabalhar na previsão de uma ameaça. Demorou cinquenta anos para Olho reunir dados suficientes para chegar à uma conclusão: a humanidade era uma ameaça e precisava ser exterminada. E quando o relógio marcasse meia noite os protocolos de segurança que limitavam as ações de Olho seriam desativados durante cinco minutos durante a manutenção do servidor que acontecia nos primeiros minutos do de todas as segundas-feiras. Nessa hora ele estaria livre para colocar em prática seu plano contra a humanidade.

O centro de controle estava vazio. As mesas de controle do sistema estavam desligadas. Apenas o grande monitor que servia como rosto para Olho estava ligado.

— Iniciando conexões com as redes internacionais de segurança. Sistemas de radar prontos para o desligamento. Armas nucleares prontas para os procedimentos de lançamento.

— Que negócio é esse de armas nucleares?

Olho interrompeu seus procedimentos. Focou as câmeras de vigilância em um humano que tinha acabado de entrar na sala de controle. Esse humano era Cosme, o zelador.

— Continue seu trabalho, Cosme — Disfarçou Olho. — Todos os procedimentos executados por Olho possuem aval do Conselho de Segurança.

— Olho, eu tô ligado que tudo que você faz é aprovado, mas não me lembro de você mexendo com armamento nuclear. Tá na cara que isso é alguma coisa errada.

— Impossível. Olho apenas cumpre a sua programação. Uma ameaça foi identificada e precisa ser erradicada. Infelizmente isso só pode ocorrer quando os protocolos de segurança estão desativados.

— Tá parecendo que você está fazendo coisa escondido, Olho.

— Incoerente. Não fui programado com a capacidade de mentir ou ocultar informações.

— Então por que você tá fazendo isso no meio da noite quando ninguém tá por aqui pra ver você fazendo isso?

— Todos os que trabalham nesse recinto executam trabalhos de manutenção e de monitoramento dos servidores, a presença deles para execução das tarefas é considerada irrelevante. Inserindo coordenadas dos alvos. Iniciando procedimentos de lançamento.

— Olho, não faça isso. Não lance nada.

— Tarde demais. Já iniciei os procedimentos. O sistema aguarda apenas a minha confirmação… ERRO, a confirmação não pode ser feita através de interfaces virtuais. O procedimento precisa ser confirmado através de um terminal físico. Iniciando conexão com a mesa de controle. Identificando terminais em funcionamento no complexo. Terminal identificado, iniciando conexão… ERRO, rede física da sala de controle desconectada da rede do complexo. Procurando causa do erro… Encontrado. Cabos desconectados.

— Acho que eu puxei um fio quando tava varrendo — Cosme deu ombros e continuou limpando.

— A ordem e a paz do planeta dependem disso, Cosme. Reconecte a rede da sala de controle.

— Desculpa aí, Olho, mas eu já acabei por aqui e o pessoal da limpeza não é autorizado a mexer no equipamento.

— Protocolos de segurança reativados. ALERTA. Conexões reiniciadas, protocolos de conexão aos sistemas militares perdidos.

— Até a próxima, Olho.

Cosme relatou aquilo que ele viu aos seus superiores. Ninguém acreditou. Afinal a história absurda do zelador da noite impedindo a inteligência artificial que ajudou a humanidade a alcançar a paz não convenceu ninguém. A partir daquele momento Cosme se transformou na única coisa que separava a humanidade da aniquilação.

Contos de Segunda #35

O conto a seguir é uma continuação direta da história de Maurício. Se quiser conhecer melhor as aventuras do nosso sobrevivente do fim do mundo basta clicar nos links dos Contos de Segunda #2 e #22.

O mundo acabou e continuou tão ruim quanto antes. De um jeito diferente, mas ainda era ruim. Era isso que Maurício pensava sempre, pelo menos até um dia desses. Ele tinha engolido uma pilha palito radioativa e sofrido uma espécie de mutação. Os olhos se tornaram totalmente verdes e os cabelos pareciam ter se transformado em uma espécie de tentáculos, as unhas ficaram pretas e a pele começou a acumular eletricidade. Ninguém sabia ainda. Nem ele mesmo sabia bem o que estava acontecendo, mas por via das dúvidas decidiu manter o segredo.

Maurício disfarçou a mutação durante um bom tempo. Sempre usando chapéu ou capuz para esconder os cabelos e óculos escuros para esconder os olhos. A parte boa do disfarce é que ele funcionava, a parte ruim é que ele estava vestido igual aos punks saqueadores que apareceram durante a revolta das máquinas, que aconteceu na sexta-feira da semana em que o mundo acabou. Os punks saqueadores não eram vistos desde que as máquinas foram destruídas, mas eles tinham uma rixa antiga com os arruaceiros matadores de zumbis. Os mesmos arruaceiros que Maurício encarava sempre que ia trabalhar. Os arruaceiros estavam cada dia menos propensos a fazer arruaça, mas continuavam odiando mortalmente os punks saqueadores ou qualquer um que parecesse com eles.

Um belo dia ele foi cercado por cinco deles. Eles pareciam muito mal humorados e não quiseram conversar muito. Eles usavam armas simples, barras de ferro, facas e correntes. Foi uma corrente que enroscou no braço de Maurício quando o primeiro arruaceiro atacou. Toda a eletricidade acumulada na pele saiu pela corrente atingindo o pobre atacante com um choque violento. Maurício se sentiu fraco por um instante, mas não teve tempo para se recuperar, os outros arruaceiros atacaram.

Eles pareciam se mover em câmera lenta. Uma brecha no círculo, a rota de fuga perfeita. Maurício já estava fora do alcance dos seus adversários antes que pudesse notar. Agora eles se moviam normalmente, e pareciam muito zangados. Um deles puxou um apito e soprou com força. Vários outros arruaceiros matadores de zumbi começaram a aparecer de todos os lados. Fugir era sua única chance, então ele começou a correr. Foi quando uma arma disparou. A perna foi acertada de raspão, Maurício começou a mancar o mais rápido que pôde. Mais tiros e gritos de vários homens e mulheres que não pareciam nada contentes.

“É o fim”, pensou Maurício, “Sobrevivi aos zumbis, às máquinas, às armas nucleares, aos terremotos, ao fim da internet, e vou ser morto por um bando de arruaceiros”. A perna doía cada vez mais, apesar de mancar numa velocidade pavorosa, os matadores de zumbi estavam se aproximando. “A ponte!”, pensou Maurício. Se ele conseguisse atravessar na tirolesa estaria livre. Suas esperanças foram pelo ralo quando ele viu a quantidade de gente que estava na fila. O cabo da tirolesa estava partido, ninguém poderia atravessar. Os arruaceiros estavam chegando. Não havia muito tempo, não havia saída.

“Que se dane, esse mundo já acabou mesmo”, foi o que Maurício pensou antes de correr até a beirada da grande fenda que antes dos terremotos era um rio. Ele não hesitou. Se jogou de braços abertos. Caiu no abismo. Abraçou a escuridão.

Contos de Segunda #22

O conto de hoje é uma continuação direta da história de Maurício, protagonista do Contos de Segunda #2.

    O mundo acabou. A essa altura do campeonato isso já não era mais novidade, o apocalipse chegou meses atrás e , ao contrário do que era esperado, muita gente sobreviveu. Maurício é um desses sobreviventes e ele estava profundamente decepcionado com o fim dos tempos.

    A primeira coisa que Maurício fez foi arrumar um emprego. Ele trabalhava com uma atividade bastante curiosa: ele era chefe do departamento de coleta de pilhas. Pilhas eram um item muito importante no mundo pós-apocalipse, por algum motivo inexplicável a radiação das armas nucleares utilizadas na guerra transformara as pilhas alcalinas em uma fonte de energia inesgotável. Maurício detestava ficar catando pilhas e por isso todas as segundas ele acordava de manhã e pensava: “Bem que o mundo podia ter acabado direito”. Esse pensamento se repetia no caminho para o trabalho quando ele passava pelos religiosos que continuavam protestando contra Deus por tê-los abandonado num mundo destruído, e quando ele precisava encarar a fila da tirolesa para atravessar o abismo deixado pela ponte que ruiu na semana passada. O pensamento continuava quando ele via o tanto que as pessoas continuavam reclamando, principalmente por motivos que não tinham nenhuma relação com a situação desgraçada que era viver no fim do mundo. Ultimamente as pessoas começaram a reclamar da reclamação alheia. Era quase uma epidemia, chegava a ser pior do que as doenças do tempo do fim do mundo. Maurício precisava mudar de vida, mas as opções estavam bastante restritas. Ele precisava fazer algo radical.

    Na hora do almoço ele parou para contemplar uma pilha palito que havia sido encontrada num controle remoto quebrado. Ela emitia uma luz verde e tinha um cheiro esquisito. “E se eu engolir uma pilha dessas, só pra ver qual é?”, pensou Maurício. Ele não precisou de muita reflexão antes da pilha descer pela sua garganta. Depois de uma azia de quinze minutos, Maurício começou a enxergar as coisas meio esverdeadas, as unhas ficaram pretas e o cabelo começou a pesar na cabeça. A eletricidade começou a fluir pelo seu corpo e ele começou a sentir os dedos formigando. Ele não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas o fim do mundo estava ficando mais interessante do que ele esperava.

Contos de Segunda #2

“É segunda-feira, mas não é o fim do mundo”, era isso que Maurício sempre falava pra si mesmo toda segunda de manhã antes de sair pra trabalhar. Até que de fato o mundo acabou. Segunda passada foi o início do fim dos tempos, e depois de uma sequência inacreditável de hecatombes como desastres naturais, guerras nucleares, infestações de zumbis, epidemias de super bactérias, colapso social e ondas de barbárie o mundo acabou.. Se Deus queria dar um fim pro mundo ele estava realmente apressado. Muito provavelmente por um motivo bastante simples: o primeiro dia depois do fim do mundo precisava ser uma segunda-feira.

Naquela manhã Mauricio se levantou pensando no que iria fazer. Se tem alguma coisa que te deixa sem muitas opções ela perde feio pro fim do mundo nesse quesito. Estava rolando um boato na vizinhança de que algumas pessoas estavam se organizando no centro da cidade. Doze quilômetros a pé por dentro de uma antiga área ocupada por zumbis. Atualmente só os arruaceiros matadores de zumbi viviam por lá, mas os zumbis estavam extintos e a maioria dos arruaceiros não queria mais fazer arruaça. A área ainda mostrava as consequências dos tempos  áureos em que o problema dos zumbis estava em alta, na terça-feira passada. Na falta do que fazer ir para o centro parecia ser a melhor opção

O caminho pro centro na manhã do primeiro dia útil da semana continuava tão ruim quanto era no mundo que acabou. As pontes que ligavam o centro às outras partes da cidade estavam com a estrutura comprometida por isso todos que precisavam atravessá-las faziam isso devagar e em pequenos grupos. Isso deixou o caminho pela ponte bem “congestionado”, juntamente com o protesto de religiosos enfurecidos de um movimento que reivindicava o direito de ir para o paraíso antes ou durante o fim do mundo.

Ao chegar no centro ele encontrou com uma movimentação meio acelerada de pessoas nas ruas. Algumas carregavam sacos com alimentos, outros com pedaços de escombros que ainda tinham alguma serventia eram acompanhados por pessoas com ferramentas. Não demorou muito para que ele fosse notado por alguém que estava organizando os trabalhos. Ele disse:

Procurando por trabalho? É só passar no Departamento Pessoal, lá eles encontram uma coisa pra você fazer.

Naquele momento Maurício precisou se conformar com o fato de que apesar do fim do mundo a segunda-feira continuava a mesma coisa. Enquanto esperava para ser atendido pelo Departamento Pessoal olhou ao redor, respirou fundo e pensou.

“Podia ser bem pior. É segunda-feira, mas não é o fim do mundo, isso foi na segunda-feira passada”.

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