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Contos de Segunda #83

    Dimitri estava acordado. Ele estava acordado fazia meses. Dormir por quatrocentos anos costuma fazer isso com qualquer monstro. Dimitri era um vampiro e via pouquíssima graça em ser um vampiro, principalmente agora que ele vivia em uma cripta debaixo de uma igreja e sua única companhia era seu servo morto-vivo, Mikhail.

    — Tenho fome, Mikhail — disse o velho vampiro.

    O pobre morto vivo estava sempre atento a qualquer palavra dita pelo mestre, desatenção não era algo muito saudável quando se trabalhava para Dimitri. Mikhail não demorou para aparecer.

    — Não temos sangue, mestre — respondeu Mikhail. — Hoje é segunda, a remessa de sangue só chega na quarta.

    — Esses cães do sindicato querem me matar de fome, isso sim — disse Dimitri irritado. — Seis litros por semana e sem direito a caçar meu próprio alimento.

    — Sem caça até completar o curso de reciclagem, mestre.

    — Eu que devia ensinar essas crianças como um vampiro de verdade deve agir. Acredita que meu professor nasceu no século vinte? Um pivete que não tem nem cem anos quer me dizer como devo agir.

    — Sinto muito, mestre, mas são as regras. Sem elas os vampiros não teriam chegado ao ano dois mil.

    — Sim, sim, já ouvi essa baboseira algumas centenas de vezes.

    Dimitri se calou por um instante. A noite avançava e ele estava com fome, nada que ele não pudesse suportar. Esperar até a chegada da nova remessa de sangue não era o verdadeiro problema, afinal ele poderia passar um mês sem alimento e sofreria muito pouco por isso. Ele tinha fome da caça. Fome de beber sangue cheio da adrenalina de uma vítima em pânico. Nada de bolsas cuidadosamente extraviadas dos bancos de sangue da cidade.

    — Preciso sair, Mikhail — disse Dimitri de repente. — Volto logo.

    — Por favor, mestre, não quebre nenhuma lei — disse o morto-vivo aflito. — Eu gosto desse emprego — na verdade não gostava tanto, mas mortos-vivos tem uma recolocação meio complicada no mercado de trabalho.

    Dimitri saiu da igreja transformado em morcego. Ele só precisava de um lugar alto para observar a cidade. Identificaria um local pouco movimentado, uma vítima, atacaria e carregaria o corpo para a cripta. Mikhail daria um jeito no corpo, ele era bom nisso. Não demorou para chegar ao alto de um prédio. De lá Dimitri observava a cidade, ouvia atentamente ao rugido da urbe. Misturadas aos sons dos carros estavam as batidas dos corações de diversos seres. Humanos, cães, ratos, pombos e gatos, todos eles chegavam aos ouvidos cuidadosos do vampiro, mas uma certa batida solitária chamou a sua atenção. Imediatamente assumiu a forma de morcego e desceu para o nível da rua, a batida daquele coração guiava suas asas e em poucos minutos ele estava de volta à forma humana. Ele parou em uma esquina com a luz do poste quebrada, no fim da rua era possível ver uma moça se aproximando. Ela andava rápido, mas não parecia muito preocupada. Ao passar pela esquina foi envolvida pela aura do vampiro. A mente da moça ficou nebulosa, como se estivesse sonhando.

    — Não se preocupe, minha cara. — Disse Dimitri de forma sedutora. — Vou terminar antes que perceba.

    — Tô de boa, coroa — disse ela extremamente relaxada. — Essa brisa que bateu agora me deixou sossegada.

    Dimitri estranhou, não lembrava de uma calma tão grande nas suas vítimas anteriores. Ele se aproximou e envolveu a cintura dela com o braço.

    — Qual foi, coroa? — Disse ela afastando o vampiro. — Que negócio é esse de se chegar assim? Nem puxou conversa, nem perguntou meu nome e já quer me agarrar?

    Dimitri paralisou com a reação da moça. De repente se sentiu extremamente desconcertado.

    — Queira me perdoar, senhorita. Eu não… Tive a intenção de ofendê-la.

    — Relaxa, é só não fazer de novo que fica tudo certo — disse a moça tentando organizar as ideias na cabeça. — Me diz aí. Tá fazendo o que nessa rua deserta nessa hora da noite?

    — Estou procurando comida.

    — Cara, sério? Nunca vi um mendigo vestido desse jeito.

    — Oh, não. Não sou um mendigo. Sou um… Caçador.

    — Uau! Que selvagem. Tá caçando o quê, coroa?

    — Nesse exato momento estou te caçando.

    — Ah… Tá. Você não tá falando sobre envolvimento carnal, né?

    — Não. Eu estou falando de te morder e beber o seu sangue.

    — Ah, não, cara. Você tá nessa? — Reagiu ela decepcionada. — Você tá nessa de beber sangue? Pensei que vocês tivessem sindicato e tal. Você é um daqueles ilegais?

    — Eu… Creio que sim.

    — Então vai pra próxima esquina, meu velho. Tá vendo isso aqui? — Disse ela apontando para uma tatuagem de um crucifixo no pescoço. — Isso quer dizer que eu vou te dar uma indigestão daquelas. Se quiser pode aparecer pra tomar um café qualquer dia desses, mas sangue não rola. Boa noite.

    Dimitri não conseguiu reagir. Ele ficou alguns minutos parado naquela esquina refletindo sobre a vida. Ele iria para casa assim que pensasse numa forma de contar o ocorrido para Mikhail.

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  1. Me lembre de comentar esse texto com vc.

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