Não é um blog sobre cachorros e bikinis

Tag: Histórias Policiais

Contos de Segunda #93

A publicação a seguir é uma continuação direta do Contos de Segunda #88.

— Não sei do que está falando, Carmim.

Angela estava sentada na minha frente, na minha cadeira e com os pés sobre minha mesa. Sacou um isqueiro para acender o cigarro surrupiado da minha gaveta.

— Três das pessoas mais ricas da cidade desapareceram nas últimas semanas — puxei uma cadeira. — Agora você aparece dizendo que tentaram te sequestrar, não me parece coincidência.

— Duvido muito que seja, detetive — desdenhou Angela. — Quem são os desaparecidos?

— Willian Doyle, Klaus Gleizer…

— O dono da fábrica de tecidos e o banqueiro — interrompeu ela. — É mais provável uma viagem em segredo com uma amante do que um desaparecimento.

— Talvez, mas com Dominique Loup na lista acabei descartando a hipótese.

Com o susto Angela saltou da cadeira e ficou olhando para mim com os olhos arregalados.

— Dominique desapareceu!?

— Duas semanas antes de Klaus Gleizer.

Angela saiu de trás da minha mesa e começou a andar de um lado para outro. Os dedos tremiam quando o cigarro foi levado à boca para uma longa tragada. Aproveitei a deixa para retornar à minha cadeira. O assento reservado aos visitantes era propositalmente desconfortável.

— Não sabia que era conhecida sua.

— Lembra de quando trabalhou para ela no caso da chantagem? Eu te indiquei para o serviço.

— Então vocês eram próximas?

— Éramos recém chegadas na cidade quando nos conhecemos — ela deu mais um trago no cigarro. — Ela queria ser cantora, eu queria ser atriz. Nós duas nos tornamos artistas, mas eu não virei atriz.

— Nem todos encaram golpes e mentiras como arte, Angela, só os que já te viram em ação.

— Gentileza sua, detetive.

— Quanto tempo faz desde a última vez em que você encontrou com Dominique?

— um mês.

— Notou algo diferente? Ela parecia preocupada com alguma coisa?

— Dominique nunca estava preocupada com nada. A carreira ia bem, o dinheiro estava entrando aos montes e os candidatos a amante só eram mais numerosos do que os candidatos a marido. Ela gosta de ser bajulada, mas acredita demais nessas besteiras de amor verdadeiro. Nenhum desses homens nunca conseguiu nada.

— Algum deles pode ter passado dos limites.

— Dominique andava com um segurança a tiracolo.

— Para alguns isso não é um problema.

— O homem é praticamente um gorila. Dois metros de altura, ex-pugilista e ex-militar. Um problema para qualquer um.

— Então ele é o primeiro da lista de suspeitos.

— Não me importo com sua lista, Carmim. Encontre Dominique e eu dobro o seu pagamento.

— A polícia costuma me pagar muito bem.

— Se isso fosse verdade, teria pelo menos um cigarro decente na sua gaveta.

Angela jogou o cigarro no cinzeiro, pegou a bolsa e partiu sem tocar no assunto da tentativa de sequestro. Livrar a própria pele está tão alto na lista de prioridades dela que só algo muito grave roubaria a atenção disso. Por mais amiga que Dominique fosse, nenhuma amizade poderia ser maior do que o apreço de Angela Bevoir por Angela Bevoir. Algo mais estava acontecendo e ela não ia me dizer. Eu precisava descobrir.

Com todas essas minhocas na cabeça eu telefonei para o número que estava no verso da foto que o chefe de polícia me entregou. A moça que me atendeu forneceu o nome do segurança e contou o pouco que sabia do que aconteceu com o homem. Mario Luppi foi encontrado desacordado em um beco no dia seguinte ao desaparecimento da patroa. Um dos braços estava quebrado, o crânio foi rachado por uma pancada, juntamente com algumas costelas. Depois de alguns dias em coma ele acordou no hospital e estava lá desde então. O horário da visita tinha acabado de começar quando eu coloquei os pés no hospital. Orientado por uma enfermeira adentrei no quarto onde Mario admirava a chuva que batia na janela.

— Boa tarde, senhor Luppi.

— Boa tarde, senhor…

— Pode me chamar de Carmim.

— É por causa das roupas vermelhas?

— Gostos pessoais pouco convencionais costumam gerar essas alcunhas.

— A que devo sua visita, senhor Carmim?

— Estou colaborando com a polícia no caso de desaparecimento da sua patroa e de outras duas pessoas.

O rosto de Mario era um misto de raiva, surpresa e espanto.

— A polícia já fez perguntas demais, senhor. Respondi a todas.

— Algo me diz que a polícia não fez todas as perguntas, pelo menos não todas as perguntas certas.

— Essa investigação não vai dar em nada. Acredite em mim, senhor, a polícia não pode resolver nada.

— Bem, a polícia me contratou para encontrar três pessoas, mas Angela Bevoir me contratou para encontrar sua patroa.

Mario ficou pálido. Aparentemente seria melhor que o próprio diabo tivesse me contratado no lugar de Angela.

— Ela me disse que é uma amiga íntima de Dominique e me ofereceu um bom dinheiro para encontrá-la.

— A senhora Bevoir deve estar se sentindo culpada. Não que ela tenha culpa no sumiço, mas nada disso teria acontecido se ela não tivesse levado a senhorita Loup ao… Não, nada. Esqueça.

— Não precisa me contar muito, Mario. Só precisa me colocar na direção certa. Para onde Angela levou Dominique?

Ele respirou fundo, reuniu coragem e disse baixinho:

— Para o Clube do Inferno.

Contos de Segunda #88

— Puxe uma cadeira, Carmim, a história é meio longa — foi o que o chefe de polícia disse quando eu abri a porta da sala.

Era uma segunda-feira chuvosa de um dos invernos mais gelados dos últimos anos. Eu mal tinha terminado de almoçar quando recebi uma ligação do departamento de polícia. Não quiseram me adiantar nada pelo telefone, mas pediram para aparecer na central assim que possível, de preferência imediatamente. O cheiro ruim chegou às minhas narinas bem antes de eu sair do meu escritório e não melhorou nada depois da minha conversa com o Chefe O’Hara.

— Não estou para histórias longas, Chefe.

— Muito ocupado?

— Bem menos do que eu gostaria, mas algo me diz que o senhor me chamou aqui porque arrumou um problema que está difícil de resolver. Um problema que não é meu, mas vai ser, assim como todos os prejuízos que a resolução desse problema vai trazer.

— Deixe de ser chorão, Carmim — desdenhou o chefe torcendo o rosto em uma careta. — Você sempre foi muito bem remunerado pelos serviços prestados ao Departamento.

— Além de todas as despesas médicas. Da última vez eu fui baleado duas vezes, uma delas por um dos seus homens.

— Nem sempre é possível saber quais dos policiais têm ligação com o crime, detetive, e suas roupas vermelhas também não te ajudam quando alguém precisa decidir em quem atirar.

— Melhor cortar essa discussão e partir logo para o assunto, Chefe.

— Pois bem — disse ele se ajeitando na cadeira. — Imagino que esteja ciente do desaparecimento de algumas pessoas nos últimos tempos.

— Pessoas desaparecem, Chefe. Acontece em todo lugar.

— Já ouviu falar de William Doyle?

— Magnata da indústria têxtil.

— Desaparecido há cinco semanas — disse O’Hara colocando a foto do desaparecido sobre a mesa. — Lembra de Dominique Loup?

— A cantora? Ela estava sendo vítima de chantagem e me contratou para descobrir quem era o chantagista.

— Três semanas atrás ela cantou na rádio e errou o caminho quando voltava para casa — mais uma foto sobre a mesa. — Não foi vista desde então. Imagino que conheça Klaus Gleizer.

— Não costumo me relacionar com banqueiros, mas sei bem quem é.

— Desapareceu na semana passada — outra foto sobre a mesa.

— Pensei que os ricaços só desapareciam quando sequestrados.

— Não é o caso, Carmim. Não houve nenhum contato posterior ao desaparecimento.

— A polícia sabe onde eles desapareceram?

— Não. Os três circulavam por áreas bem distintas da cidade e não encontramos nenhuma ligação entre eles.

— Alguma informação útil das famílias?

— Doyle é viúvo e nunca teve filhos, Dominique aparentemente cortou ligações com a família quando decidiu seguir a carreira artística, quem nos procurou foi o seu empresário.

— E Klaus Gleizer?

— A família toda vive na Europa e a diretoria do banco optou por manter o desaparecimento em segredo por enquanto. Eles imaginam que tudo se resolverá em poucos dias.

— Alguma notícia de outros desaparecimentos em circunstâncias similares?

— Até agora não.

— Infelizmente não vou poder cobrar o valor de sempre. Esse caso tem cara de que vai dar muito trabalho ou muita dor de cabeça.

— Considere um aumento de vinte por cento. Estou sendo pressionado por todos os lados por causa desses desaparecimentos.

— Algum dos seus vai me auxiliar?

— Me aponte um culpado e vai ter todo o auxílio que precisar.

Provavelmente algum auxílio médico.

— Darei notícias assim que possível — me levantei ainda no meio da frase. — Se importa se eu ficar com as fotos?

— De forma alguma. Pedi para colocarem algumas informações úteis no verso. Não posso fornecer nossos arquivos, mas não vou te deixar às cegas.

— Não esperava menos do senhor.

Na verdade eu esperava bem mais, sempre se espera bem mais da polícia.

A volta para o escritório foi rápida. As informações dadas pelo Chefe O’Hara estavam se batendo sem rumo dentro do meu cérebro e eu precisava começar a ligar os pontos, mas não antes de dar alguns telefonemas. Uma busca minuciosa na casa dos desaparecidos e as coisas começariam a fazer sentido. Entrei no prédio, subi alguns lances de escada e parei diante da porta entreaberta. Saquei a pistola e tentei ver algo pela brecha da porta. Não pude ver nada, mas o perfume que eu senti me fez guardar a arma, mas não me deixou mais tranquilo. Abri a porta devagar e encarei a mulher que me esperava sentada na minha cadeira com os pés sobre a mesa.

— Precisa de trancas melhores, Carmim.

— Trancas boas não me dizem quando alguém arromba meu escritório, Angela. Pensei que não gostasse de vir aqui, você costuma ligar.

Angela Bevoir era um dos maiores problemas da minha vida e também uma boa cliente. Normalmente o pagamento compensava a dor de cabeça, mas só a dor de cabeça.

— Não gosto. A localização é péssima, a limpeza é no mínimo questionável e os degraus são muito altos, mas o assunto é urgente.

— E qual seria?

— Ontem eu quase fui sequestrada — disse ela acendendo um cigarro. — Quero saber o porquê. Pode me ajudar?

— Depende.

— Do quê?

— Do quanto você sabe sobre a nova moda entre os ricaços da cidade.

— E qual seria?

— Desaparecer.

 

Contos de Segunda #72

    Horácio era um assassino da máfia. Até um tempo desses ele era o pior assassino da história da máfia, mas depois de dois alvos eliminados (ou quase) ele começou a ser considerado apenas um assassino muito ruim. Tanto que normalmente Horácio era a última opção dos chefes para apagar alguém, mas isso não era garantia de nada.

    A tarde da segunda-feira estava no final. Horácio tinha acabado de fazer a cobrança de um empréstimo. Infelizmente o pobre devedor não tinha o dinheiro… Pelo menos até Horácio quebrar dois ou três dedos dele. A quantia apareceu miraculosamente e Horácio pôde ir embora. Ele estava chegando perto do local combinado para entregar o dinheiro quando o celular tocou.

    — Horácio, preciso que você resolva um problema pra mim — disse a voz do outro lado da linha.

    — Pode dizer, chefe — respondeu Horácio se apegando à esperança de não precisar matar ninguém.

    — Pegaram um dos nossos hoje de manhã e parece que ele vai ser interrogado hoje de noite.

    — Nossos rapazes estão acostumados com esse tipo de pressão, chefe. A polícia não vai conseguir nada.

    — Não é um dos rapazes, Horácio. Pegaram um dos nossos banqueiros… Você sabe que esse pessoal de escritório não tem a fibra do pessoal de campo. Ele vai cantar que nem um passarinho.

    — Nenhum dos nossos policiais pode ajudar?

    — Ele foi pego pela equipe de uma delegacia que não está na nossa folha de pagamento. Não conte com ajuda da lei… Esse cara não pode ser interrogado, preciso que dê um jeito nele.

    — Pensei que os advogados resolviam esse tipo de problema, chefe.

    — Nossos advogados estão marcados, Horácio. Depois do fiasco do mês passado a polícia ficou esperta com eles.

    — Nenhum dos nossos foi detido recentemente?

    — Sempre tem alguém, mas nosso pessoal é esperto o suficiente pra ser preso pelos policiais certos.

    — Tem alguém pra entrar nessa comigo?

    — Fim de semana movimentado, Horácio, precisei dar uma folga pros meninos. Não te preocupa que vai ser coisa simples: entrar, apagar o cara e sair. Se precisar de ajuda pra sair é só ligar, mas a parte de entrar é contigo.

— Considere o trabalho feito — disse Horácio antes de desligar.

Imediatamente ele procurou por um contato da agenda. Felizmente os dedos que Horácio quebrou não impediram o pobre homem de atender o telefone.

— Vou falar apenas uma vez, por isso escute com atenção — disse Horácio assim que a ligação foi atendida. — Você vai ligar pra polícia dizendo que um assaltante chegou aí, quebrou os teus dedos e levou uma quantia em dinheiro. Quando te perguntarem como era o ladrão você descreve alguém parecido comigo. Depois a gente resolve a questão do teu dinheiro.

    Tudo aconteceu exatamente como Horácio planejou. Em menos de meia hora ele estava sendo conduzido para a cela da delegacia. A mesma cela onde estava o banqueiro.

    — Esses policiais andam trabalhando bem até demais — resmungou Horácio da forma mais amigável que pôde.

    O banqueiro era um homem de meia idade, magro e cheio de cabelos grisalhos. Ele parecia nervoso. Nervoso até demais.

    — Eles só estão tentando fazer o trabalho deles — respondeu ele acanhado.

    — Eu também estava tentando fazer o meu… Não que eu estivesse realmente assaltando, mas o cara que me deu o dinheiro não achou isso. E você, amigo? Tá aqui por que?

    — Mexo com dinheiro… Algumas vezes com o tipo errado de dinheiro.

    — Entendi… Olha — Horácio olhou para fora da cela, quando teve certeza que não tinha nenhum guarda por perto continuou. — Acho que posso te ajudar a sair daqui.

    — Não tem  como… Pelo menos não antes do meu interrogatório.

    — Você só precisa ir pra um lugar onde o pessoal dono do “tipo errado de dinheiro” que você mexeu possa te ajudar. A gente finge uma briga, eu te acerto nos lugares certos e eles vão precisar te levar pro hospital.

    — Não tô gostando muito dessa…

    A frase terminou com o punho fechado de Horácio acertando o rosto do banqueiro. Ele só precisava acertar mais alguns daqueles e quando o alvo estivesse desmaiado seria mais fácil. No terceiro soco um policial invadiu a cela e jogou Horácio no chão. O pobre banqueiro estava meio acordado, com o nariz quebrado e cheio de sangue. A viatura saiu com ele dentro alguns minutos depois. Mais ou menos na hora que Horácio conseguiu convencer o guarda a deixá-lo fazer o telefonema ao qual tinha direito.

    — Aqui é Horácio.

    — Espero que tenha resolvido tudo — disse o chefe do outro lado da linha.

    — Quase… Eu tentei simular uma briga e dar um jeito no cara sem parecer que estava tentando dar um jeito no cara, mas…

    — Mas o quê, Horácio? O banqueiro ficou vivo?

    — Sim, mas levaram ele pro hospital. Tem alguém lá pra terminar o serviço?

    — Deve ter, Horácio, alguém bem mais competente que você — o chefe deu um suspiro. — Quer saber, Horácio? Aproveita a chance e tira umas férias na cadeia. Tem um pessoal nosso na penitenciária, eles vão cuidar de você. Depois que você sair a gente conversa.

    O banqueiro permaneceu no hospital durante alguns dias, o suficiente para receber diversas orientações, e algumas ameaças. O interrogatório não deu em muita coisa e ele pôde aguardar em liberdade pelo julgamento. Já Horácio não teve tanta sorte. Ganhou alguns meses de estadia na penitenciária estadual.

Contos de Segunda #59

    — Finalmente! Depois de tanto lutar, finalmente eu serei capaz não só destruí-lo, mas também de desvendar os segredos dos seus poderes.

    Essas palavras foram repetidas inúmeras vezes nas últimas horas. Quem as repetia? Um homem que abandonou seu antigo nome para atender pela alcunha de Dr. Malícia. Mas para quem ele estava repetindo tais palavras? Para um homem que estava amarrado, pendurado de cabeça para baixo sobre um tanque com uma substância nefasta com cheiro de gelatina de limão. Esse homem era conhecido como Homem Camaleão.

    — Jamais, Dr. Malícia — respondeu o Homem Camaleão.

    — Ainda não entendeu, Camaleão? Dessa vez não há escapatória — Malícia foi até a mesa de controle e ligou um grande monitor que mostrava uma série de diagramas, uma cadeia de DNA e um modelo tridimensional do Homem Camaleão. — Em poucos minutos você será mergulhado nessa solução especial que, além de corroer até os seus ossos, vai isolar os genes responsáveis pelos seus poderes camaleônicos e assim eu poderei reproduzir esses genes para criar o meu exército de homens camaleão.

    — Seu plano maligno nunca dará certo, Malícia, logo logo eu sairei daqui e você estará atrás das grades.

    — Vejo que seu senso de humor continua intacto, Homem Camaleão, mas dessa vez você não tem a menor chance de…

    — Parados! Polícia!

    Do nada uma equipe tática do Departamento de Polícia de Vila Urbana entrou nas instalações abandonadas que serviam como laboratório para Dr Malícia.

    — Mãos pra cima!

    Dr Malícia obedeceu imediatamente, mas não deixou de protestar.

    — Que absurdo é esse? Vocês não podem sair invadindo a casa dos outros assim — disse Dr Malícia ainda com as mãos para cima.

    — Não adianta tentar enrolar a gente — antes do final da frase o rádio na cintura do policial iniciou a transmissão de uma mensagem, ele ligou os fones de ouvido no rádio e começou a falar com quem estava do outro lado. — Sim, já entramos… Não, não, ele tem um herói mascarado pendurado de cabeça pra baixo sobre uns produtos químicos com cheiro de gelatina…. Aparentemente não é nenhuma droga e…

    — Com licença, policial — interrompeu o Homem Camaleão. — O que as drogas tem a ver com isso?

    — Estamos investigando esse local faz dois meses —  começou o policial. — Temos provas de que neste endereço funciona um laboratório de produção de drogas.

    — Acho que vocês estão falando do meu primo — se adiantou Dr. Malícia ainda com as mãos para cima. — Ele me emprestou esse imóvel por que ele costuma dar folga ao pessoal dele nos dias de segunda. Não sou muito fã da polícia, mas vou dizer logo que vocês não vão encontrar drogas por aqui. Só pra vocês não perderem tempo procurando.

    — Isso mesmo, policial, nesse caso meu inimigo mortal está coberto de razão.

    — Então hoje a gente não vai encontrar por aqui ninguém que vende ou fabrica drogas?

    — Exato. Hoje só vai ter por aqui a boa e velha vilania. Meu plano de destruir esse herói aqui não tem nada a ver com drogas.

    — Eita… — disse o policial. — Então não tem ninguém pra prender?

    — Receio que não, meu caro policial — disse o Homem Camaleão. — Pelo menos não até eu me desamarrar daqui e derrotar o Dr Malícia. Sabe como é, a legislação nova protege os vilões que ainda não encerraram a sua luta contra algum super herói.

    — Precisa de alguma ajuda, Homem Camaleão? — Indagou o policial. — Se não precisar a gente vai embora.

    — Está tudo sob controle, pode deixar que a gente se vira por aqui.

    — Então se é assim… Não tem mais nada pra gente aqui, pessoal. Vamos embora.

Em um minuto todos os policiais já tinham ido embora. O vilão e o herói passaram alguns segundos calados quando o Homem Camaleão quebrou o silêncio.

— A gente parou onde mesmo?

— Nem sei… Se importa de começar de novo?

— De maneira alguma, fique à vontade.

    Dr. Malícia limpou a garganta com um pigarro, se empertigou e disse em alto e bom som:

    — Finalmente! Depois de tanto lutar, finalmente eu serei capaz não só destruí-lo, mas também de desvendar os segredos dos seus poderes.

Contos de Segunda #57

    Horácio era um assassino da máfia, provavelmente o pior de todos os assassinos da máfia. Tanto que ele só conseguiu matar um cara… Indiretamente, mas conseguiu. É verdade que Horácio ainda estava no último lugar do ranking de matadores da máfia, mas a diferença entre ele e o penúltimo colocado estava menor… E diminuiria mais um pouco depois daquela noite.

    O telefone tocou na hora do jantar. Horácio tinha acabado de pegar o segundo cachorro quente das mãos do dono da carrocinha quando sacou o aparelho do bolso.

    — Horácio, preciso que você resolva um problema — disse o homem do outro lado da linha.

    — Pode dizer, chefe — respondeu Horácio. Algo dizia que as palavras a seguir tirariam seu apetite.

    — Um dos nossos meninos precisa ser aposentado.

Horácio teria engasgado caso estivesse comendo.

— É só dizer quem vai se aposentar.

— Lorenzo — a voz no outro lado da linha suspirou antes de continuar. — O rapaz perdeu o rumo quando o pai morreu, atualmente mais atrapalha do que ajuda e a polícia já está de olho nele.

— Entendi… Só acho que não sou a pessoa indicada pro serviço, chefe, normalmente eu não cuido dos assuntos internos. Não tem ninguém do RH disponível?

— Final de semana agitado, Horácio, os meninos pediram uma folga e eu não tive como negar.

— Tudo bem, chefe, considere o trabalho feito.

Horácio abriu a lista de contatos e procurou pelo nome de Lorenzo. O telefone chamou três vezes e ele atendeu.

— Oi, Horácio — disse Lorenzo.

— Lorenzo, estou precisando de ajuda pra fazer um trabalho, posso passar na tua casa daqui a quanto tempo?

— Me dá quinze minutos.

— Dez. Chego aí em dez. — sem ouvir a resposta Horácio desligou o telefone.

Dez minutos depois Lorenzo estava parado na frente do prédio onde vivia. Com trinta segundos de atraso o carro de Horácio virou a esquina. Lorenzo entrou no carro sem dizer nada, prendeu o cinto de segurança e só começou a falar depois do carro virar a esquina.

— Qual o serviço, Horácio?

— É só um cara que a gente tem que tirar da jogada.

— Eu não sou muito chegado nessa de tirar gente da jogada, Horácio.

— Só preciso de alguém pra dirigir o carro. Nem sangue você vai ver.

Horácio parou o carro em uma ladeira. A rua descia, cruzava uma avenida movimentada e terminava em outra rua que margeava o rio. Ele puxou a arma do coldre embaixo do braço e verificou se estava carregada antes de guardá-la novamente.

— Vem pro banco do motorista, Lorenzo, eu vou pro banco de trás — disse Horácio saindo do carro e entrando pela porta de trás. Lorenzo obedeceu. — Sabe, Lorenzo, essa nossa profissão é bem arriscada, mas eu nunca senti medo durante o trabalho. Sabe porquê?

— Tem que ser muito doido pra não ter medo, não vejo motivos pra não ter.

— Por que eu ando na linha, faço meu trabalho e não chamo a atenção da polícia. Não dou motivo pro meu chefe se aborrecer comigo… Nada que acontece ou aconteceu comigo durante o trabalho é pior do que nossos empregadores fazem quando estão aborrecidos com alguém.

— Por favor, Horácio — disse Lorenzo tremendo só de imaginar o rumo daquela conversa.

— Não te faltaram avisos, Lorenzo — disse Horácio destravando a arma e colocando na nuca do pobre ocupante do banco da frente.

— Eu tenho família.

— Teus pais falecidos e aquele teu filho que você não assumiu não contam como família.

— O que eu fiz pra merecer isso?

— Além de ter colocado a carga daqueles teus amigos traficantes dentro dos nossos caminhões? Além de ter perdido o nosso último carregamento de armas e ter dado provas pra polícia acabar com a nossa operação na zona portuária? Acredito que fora isso… É, não tem mais nada.

— Por favor, cara — Lorenzo estava chorando. — Quem vai ficar com o meu cachorro? E o orfanato que eu ajudo?

— Por causa deles eu vou te dar uma colher de chá. Eu vou te dar uma coronhada, tirar o freio de mão do carro, você vai cruzar aquela avenida movimentada, vai chegar ao fim da rua e o carro vai cair no rio… Então você vai desaparecer e nunca mais ninguém vai ouvir falar no teu nome.

— Tá falando sério?

— Claro, você só precisa colaborar. Mantenha o volante reto, desça a rua, jogue o carro no rio e ninguém nunca mais vai ouvir falar de você —  a coronhada veio logo depois do final da frase. Lorenzo quase bateu a cabeça no volante, mas o golpe foi fraco o suficiente para fazê-lo suspeitar de algo.

Horácio puxou o freio de mão e pulou pra fora do carro. No dia seguinte os noticiários só falavam do carro que atravessou uma avenida, uma rua e se atirou no rio. Não se sabia a quantidades de ocupantes do veículo, mas não foi achado o corpo de nenhum deles. A suspeita é de que o carro já estava vazio quando caiu no rio.

Contos de Segunda #47

   Horácio era um assassino da máfia. Era assim que ele se enxergava, apenas um assassino da máfia. A máfia enxergava Horácio como o pior assassino de todos os tempos. Não que ele fosse um capanga incompetente, muito pelo contrário. Horácio era excelente em intimidação, cobrava dinheiro como ninguém, era treinado em todas as modalidades de briga de rua, dirigia como um verdadeiro piloto e tinha contatos em todos os lugares… Só não servia para matar os outros. Tanto que ele era sempre a última opção para esse tipo de serviço. Quando todos os matadores estavam impossibilitados de matar ligavam para Horácio.

    — Horácio, preciso que você faça um serviço — disse a voz do outro lado do telefone.

    — Pode dizer, chefe — respondeu Horácio.

    — Sabe o cara da alfandega? Ele pisou feio na bola, preciso que você garanta que essa foi a última vez que ele nos deixou na mão.

    — Não seria melhor só dar um susto no cara?

    — Ele já levou susto demais. Acabou a festa pra ele. Serviço limpo e discreto, Horácio, você é meu único homem na rua hoje.

    — E o resto do pessoal, chefe?

    — O fim de semana foi movimentado, Horácio, precisei dar uma folga pros meninos. Essa demanda apareceu de última hora, se não fosse urgente eu não te pedia. Só resolve isso, ok?

    A ligação foi encerrada antes que o pobre capanga pudesse argumentar. Pelo menos esse alvo seria mais fácil de eliminar do que os outros, o alvo em questão se chamava Carlos, tinha 58 anos e um problema na perna que o impedia de correr. Horácio entrou no carro e partiu para o porto.

    O escritório da alfandega ficava em uma das partes menos movimentadas do porto e como Carlos gostava de fazer hora extra, não seria difícil pegá-lo sozinho. O relógio marcava nove da noite quando o alvo finalmente saiu do escritório em direção ao carro. Horácio estava encostado na porta esperando por ele.

    — Boa noite, Carlos.

    — É… Boa noite… Horácio, não é? Transmita meus cumprimentos ao seu empregador e diga que já estou trabalhando para resolver o imprevisto de hoje.

    — Isso é ótimo, Carlos, mas meu empregador resolveu adotar medidas mais, digamos, permanentes.

    Horácio sacou a pistola. Um serviço limpo e discreto, foi o que o chefe solicitou. Normalmente isso significa um tiro na testa com uma pistola silenciada ou a simulação de um acidente, nenhuma testemunha. O capanga era um péssimo atirador, mas normalmente não errava a uma distancia tão curta. Fez mira e puxou o gatilho… Nada. Carlos olhou incrédulo para seu algoz. Outra tentativa… Nada. Depois da terceira Horácio lembrou de destravar a pistola. A essa altura Carlos já estava correndo o máximo que sua perna defeituosa permitia, bem mais do que Horácio esperava.

    O pobre funcionário da alfandega corria sem saber bem para onde. Os galpões estavam fechados, assim como os escritórios, a única saída era se jogar no mar e esperar que o assassino se contentasse com sua possível morte. Um tiro passou zunindo pela orelha de Carlos, ele começou a correr mais rápido. Outro disparo, o tiro passou raspando no ombro do futuro defunto, ele começou a chorar. A água não estava tão longe, o assassino estava cada vez mais perto.

    Então viu-se uma luz. Ouviu-se um barulho de freio e uma batida. O motorista do caminhão de presunto não esperava um senhor meio manco cruzando seu caminho naquela noite. Não conseguiu evitar, acertou o pobre Carlos em cheio, arremessando o pobre coitado algumas dezenas de metros na frente. Quando a ambulância chegou o coitado já tinha parado de respirar fazia um bom tempo.

    Horácio esperou até a ambulância chegar. Ele ligou para o contato no IML, dez minutos depois o contato ligou informando que um carro já estava a caminho do local. Finalmente Horácio podia comemorar a eliminação de um alvo e o melhor de tudo: ele não precisou matar ninguém.

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