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Tag: Animação Japonesa

Preciso Falar Sobre Nezuko

Demon Slayer é um queridinho dos naruteiros desde 2019. Caso você não seja naruteiro/naruteira ou já tenha sido e não exerça mais a profissão, eu vou dar um contexto.

Demon Slayer é a história desse boy aqui:

Que teve sua família brutalmente assassinada por um monstro comedor de carne e bebedor de sangue. Dá pra traduzir como demônio, mas os onis (monstros comedores de carne e bebedores de sangue) não são bem o que a gente conhece e entende como demônio, na prática eles funcionam mais como vampiros dentro da série. Inclusive eles também não podem sair no Sol. Mas não foi todo mundo da família dele que morreu, teve a irmã dele que, em vez de ser assassinada e parcialmente devorada, foi transformada num monstro comedor de carne e bebedor de sangue.

A menina não é igual a todo mundo e consegue se controlar pra não comer pessoas, mas ela tem que usar essa mordaça de bambu só pra garantir. Só que é desenho de lutinha e tem que ter as lutinhas, por isso que Tanjiro (o boy lá) e Nezuko (a irmã carnívora do boy) se tornam parte do esquadrão de exterminadores que tem como trabalho matar os monstros comedores de CPF. Além da missão principal, que é matar todo mundo que faz gente de petisco, os dois irmãos entram numa jornada pra tentar transformar Nezuko de volta em uma humana normal.

Tudo que eles fazem é de olho nesse objetivo. A  menina quer ser humana e o menino quer salvar a única pessoa que sobrou da família dele. É a motivação dos dois, é o combustível dos dois, não tem nada que eles não façam ou sacrifiquem por causa desse sonho. É por isso que eles enfrentam os onis, é  por isso que eles se arriscam, por isso que eles treinam e ficam mais fortes. Obviamente eles absorvem todo o senso de dever e sacrifício do esquadrão, mas no final é isso que eles querem.

 

ATENÇÃO! A PARTIR DAQUI TEM UNS SPOILERS.

 

Corta pra temporada que saiu esse ano.

 

Último episódio. Os dois irmãos estão numa perseguição ao inimigo principal da temporada. Enfraquecido, o inimigo procura algum humano indefeso de quem ele possa se alimentar e recuperar suas forças. E os encontra, três ferreiros que fugiram do ataque que a vila sofreu. Ele tá fraco, lento, mas forte o suficiente pra dar cabo de três fulanos sem treinamento de combate.

O cenário é uma planície, não tem lugar pra se  esconder.
Tanjiro alcança o inimigo usando suas últimas forças, desfere o golpe fatal e corta a cabeça do vilão. Única forma de matar um oni.

O  vilão foi derrotado. O Sol começa a nascer.

Em todo o resto da série o Sol foi um aliado. Sobreviver até o nascer do Sol era uma garantia de segurança para qualquer exterminador. Até o oni mais forte não pode resistir aos raios do Sol.

O Sol está nascendo. O cenário é uma planície, sem lugar pra se esconder.

Nezuko está lá.

Tanjiro corre até a irmã, precisa protegê-la. Salvá-la da morte certa. Ele vai até ela na esperança de alertá-la sobre o perigo que corre.

Ela ignora o desespero do irmão. Tem algo mais importante acontecendo.

O inimigo não tinha sido derrotado. O corpo sem cabeça se levanta e volta a perseguir os pobres ferreiros. Nezuko tenta desesperada avisar ao irmão (amordaçar a menina não parece uma ideia tão boa agora). Depois de um tempo, Tanjiro finalmente nota o inimigo que não morreu e se prepara para mais um golpe.

O Sol toca a pele de Nezuko.

Ela começa a berrar enquanto a carne é queimada pelos raios da aurora.

Tanjiro a protege da luz. Os outros aliados estão muito longe e muito fracos para ajudar. Ela encolhe o corpo para tentar se proteger melhor na sombra do irmão. Ela geme e se contorce de dor. Enquanto isso, os ferreiros gritam de pavor e clamam por ajuda.

Tanjiro mal consegue respirar. Os exterminadores tiram suas forças das técnicas de respiração  e adquirem um controle absoluto sobre ela. A respiração descontrolada de uma espécie de crise de ansiedade é o maior sinal de desespero.

Ele jurou proteger os indefesos. Ele jurou dar tudo para derrotar os inimigos… Ele prometeu trazer a irmã de volta. Ele era a única coisa que separava a irmã de virar um punhado de cinzas… A única coisa que protegia os pobres camponeses de uma morte violenta.

Não consegue decidir. Ele mal consegue suportar o peso da dúvida.

Os pés saem do chão.

Tanjiro é arremessado no ar. Nezuko lança seu irmão no ar.

A cena é na câmera mais lenta possível. Os dois irmãos se encaram. Nos olhos do menino uma total incredulidade. Nos olhos da menina não há um traço de dúvida. Com um sinal ela diz o que quer que seu irmão faça: derrote os inimigos e salve aquelas pessoas. Naquela fração de segundo toda a jornada dos dois passa em um instante pela mente de Tanjiro. As lágrimas brotam nos olhos quando ele encara a irmã, agora já bastante queimada pelos raios do Sol.

Ela olha de volta. Ela sorri. Ela se despede.

Nezuko sempre foi um personagem a ser protegido. Sua vulnerabilidade ao Sol e algumas restrições provocadas pela falta de consumo de carne e sangue sempre a impediram de ser independente do irmão. Não é tão fácil lembrar o tempo todo dela como uma exterminadora. Como parte do esquadrão, como uma pessoa que está ali no cumprimento do dever. Naquele momento Nezuko foi muito mais exterminadora do que o irmão. Muito mais forte do que o irmão. E essa cena ficou comigo.

Reassistindo a esse trecho do episódio eu me reencontro com a força de Nezuko. Me reconecto com os olhos monstruosos da menina com a carne meio queimada e como ela não hesita em dar a própria vida para proteger os indefesos. Claro que eu sei que ela é um personagem de desenho japonês de lutinha. Claro que o sacrifício de um personagem fictício nem se compara com o sacrifício de uma pessoa de carne e osso. Eu também sei que foi decisão da autora que ela fizesse isso e todas essas coisas… Mas naquele momento, dentro do microcosmo em que só existia eu e a história que eu assistia na tela do meu computador, Nezuko foi mais forte que tudo. Enquanto eu me desesperava junto com Tanjiro e me sentava na ponta da cadeira sem saber o que ia acontecer, Nezuko me jogou no ar, me olhou nos olhos, me mandou lutar e se despediu de mim com um sorriso. Se não são momentos como esse que fazem a ficção valer a pena, não sei mais o que faz.

Acabou… Ainda Bem

    No último domingo foi ao ar o episódio final da série mais recente da franquia Gundam. Eu acompanhei, episódio por episódio, ao longo de semanas a reta final dessa história. Faz mais sentido dizer que eu acompanhei toda a sucessão de desgraças que aconteceram ao longo de toda a segunda temporada, principalmente nos últimos oito ou dez episódios. Foi tanta desgraça que, quando o último episódio chegou ao fim, em vez de ficar triste pelo fim de um anime tão bom, eu fiquei aliviado. E foi essa sensação tão singular que me deu a ideia pro post dessa quarta-feira.

    Nós, espectadores/leitores/ouvintes/jogadores, temos um hábito que é, no mínimo, pouco saudável: o hábito de se apegar aos personagens. O nível de apego varia muito de pessoa pra pessoa e depende principalmente de três fatores. O primeiro é o nível de identificação que o personagem gera no espectador. Quanto mais nós nos enxergamos naquele personagem, quanto mais vemos ali uma representação de nós mesmos, mais nos apegamos, afinal é a gente que tá ali. A identificação pode não acontecer exatamente com o personagem, pode acontecer uma identificação com a causa que aquele personagem, ou grupo de personagens defendem. Você compra a ideia. O segundo fator é o nível de admiração que o espectador tem por aquele personagem. Enquanto no primeiro caso temos os personagens mais “gente como a gente”, nesse segundo nós temos personagens que são mais icônicos, verdadeiras fontes de inspiração, algo mais parecido com o herói clássico ou uma adaptação dos arquétipos clássicos e ideais de heroísmo para o contexto da trama em questão. O terceiro fator é justamente o desempenho ou a importância do personagem dentro da história. Quanto mais diferença os personagens fazem na trama, mais queremos que ele continue fazendo a diferença. Claro que existem os personagens que fazem a diferença de forma negativa, mas esse não é o foco no momento. Aí chegamos na parte principal desta publicação: o sofrimento.

    Normalmente uma boa história apresenta um conflito interessante. Existe um desafio, um obstáculo, um inimigo, ou vários, que estão lá pra complicar a vida dos mocinhos. O mocinho vence os desafios e a história acaba. Só que existem algumas histórias em que tudo é conseguido à duras penas e os mocinhos se lascam de uma maneira absurda. Os fãs de Guerra dos Tronos, Homem-Aranha, Demolidor e de alguns desenhos japoneses sabem bem do que eu tô falando.

Todo esse sofrimento acaba ultrapassando as fronteiras da ficção e chega na gente quase como uma agressão. Em algumas histórias o mais maltratado é, sem dúvidas, o leitor/jogador/espectador. Vale aqui a menção honrosa do autor mais lembrado atualmente por maltratar seus personagens e o público, nosso amigo autor de Guerra dos Tronos, George R.R. Martin.

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Aí um dia acaba a história e junto com ela o sofrimento daqueles personagens. Quando o final do Gundam finalmente chegou, eu não tive pena de ver aquela série fantástica terminando. Eu só queria parar de esperar pela próxima desgraça. Agora não preciso esperar mais… Ainda bem. Ainda bem que acabou. Que alívio.

 

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