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Contos de Segunda #78

    Vocal, Guitarra, Baixo e Bateria, os quatro elementos fundamentais do 4Ladies. Garotas que ainda nem saíram da escola e já demonstram um nível de comprometimento e dedicação raro na maioria das pessoas com a mesma idade. Para elas a banda é mais do que uma diversão, é um projeto de vida feito em conjunto. Infelizmente nem sempre as coisas são tão fáceis para essas quatro meninas.

Era segunda-feira e Guitarra tinha acabado de chegar da aula. Mais uma vez ela tinha recebido o boletim e mais uma vez ela esconderia bem longe das vistas da mãe. A menina entrou no quarto e procurou pelo case vazio da guitarra que ficava jogado ao lado do guarda-roupa. Abriu o zíper e soltou um pedaço do forro, revelando o paradeiro dos boletins dos dois últimos bimestres, onde o terceiro boletim estava prestes a ser guardado.

— AGNES! — Gritou uma mulher surgida não se sabe de onde.

— AAAAHHHH! — Assustou-se a pobre guitarrista desavisada. — Mãe? É… Oi… Porque a senhora tava dentro do guarda-roupa?

A mãe de Guitarra ainda estava parcialmente coberta com as roupas da filha quando saiu de dentro do guarda-roupa.

— Eu sabia que você tinha dado sumiço nos boletins, pensou que ia sair dessa ilesa? Cadê? Eu quero ver esses boletins.

    — Mãe, vai por mim, a senhora não quer ver esses boletins — respondeu Guitarra tentando manter a calma. — Vamos manter a situação das minhas notas longe dessa casa, não gosto de trazer os problemas de fora pra cá.

    — Agnes, você tem três segundos pra me dar esses malditos boletins.

    Ela só precisou de um segundo.

    — Que notas são essas, Agnes? Que tanto vermelho é esse? Um bicho morreu por cima desses boletins?

    — Ah, mãe… É que a escola tá muito complicada e…

    — E mais nada! A senhorita vai dar um jeito de recuperar essas notas… E nada de guitarra enquanto não tiver melhora.

    — Não, não, nãonãonãonão — repetiu Guitarra sem querer acreditar. — Por favor, mãe. Eu estudo, eu tiro nota boa, prometo, mas não me deixa sem guitarra… A gente finalmente arrumou um lugar pra tocar, a gente não pode deixar essa passar.

    — Quando vocês tocam?

    — Daqui a duas semanas mais ou menos.

    — Pode tocar com suas amigas, mas SÓ se começar a estudar, e depois desse show a senhorita só encosta nessa maldita guitarra depois que as notas saírem.

    — Mas…

    — Sem “mas” — interrompeu a mãe. — Se reclamar eu jogo essa guitarra no rio.

    A conversa acabou ali, mas imediatamente Guitarra convocou uma reunião da banda. Normalmente elas trocavam mensagens, mas esse assunto era muito sério, era melhor fazer uma videoconferência. Vocal, Baixo e Bateria ligaram seus computadores imediatamente. A conversa só começou de verdade quando Guitarra terminou de contar a história toda.

    — Tu é MUITO BURRA, Guitarra — explodiu Bateria. — Como é que tu me tira esse tanto de nota vermelha?

— Te dana, Bateria. Até parece que só eu aqui tiro nota vermelha.

— Eu já estou quase passada de ano — disse Vocal meio sem jeito.

— Eu só tô abaixo da média em duas — ostentou Bateria.

— Chega dessa conversa de “o meu é maior que o seu” e vamos focar no problema — cortou Baixo.

— Baixo tá certa, a gente precisa dar um jeito nessa situação — continuou Vocal.

— Na verdade a gente não precisa fazer nada — ressaltou Bateria. — É só essa bandida estudar em vez de ficar tocando guitarra o tempo todo.

— Eu estudo guitarra, imbecil — rosnou Guitarra. — Coisa que você devia fazer de vez em quando.

— Se eu fosse ruim que nem você eu ia precisar estudar um bocado também — provocou Bateria.

— Da próxima vez que a gente se encontrar eu vou quebrar minha guitarra na sua cabeça.

— Meninas! — Interrompeu Vocal. — Foco no problema.

— Foi mal — se desculpou Bateria. — Quem pode ajudar Guitarra a estudar? Eu estou um ano na frente dela, mas ano passado eu fui bem mal na escola.

— Vocal tá um ano atrás, nem vai poder me ajudar… Acho que sobrou pra você, Baixo.

Baixo estudava na mesma escola que as outras meninas e era a única da banda no mesmo ano que Guitarra, elas até chegaram a estudar na mesma sala algumas vezes.

— Sei não… — resmungou Baixo. — A gente já tentou estudar e não deu muito certo.

— Baixo já tentou me ensinar matemática uma vez e… — começou Vocal. — Bem… A gente não quis tentar de novo.

— Faz pela banda, miga — suplicou Bateria.

    — Por mim, Laila — apelou Guitarra.

    — Tá bom, eu ajudo. Mas só dessa vez e só até as próximas provas… A gente ainda nem começou e eu já tô arrependida.

 

Nota 5,0… Parabéns!

Posso estar enganado, mas eu tenho certeza de que todo mundo que gosta de escrever começou essa paixão nas aulas de redação. Comigo não foi diferente, até o segundo ano do ensino médio redação era uma das minhas matérias preferidas, desde aquele tempo eu dava umas viajadas e fazia minhas primeiras experimentações. Minhas notas me estimulavam a fazer isso e na minha cabeça juvenil eu era um excelente aluno de redação. Na minha cabeça juvenil eu me via praticamente como um escritor profissional, mas isso durou até exatamente o segundo ano do ensino médio. Meu terceiro ano provou que a vida não era essa maravilha toda, tanto que quando eu penso em redação apenas o ano de 2007 vem à mente. Inclusive foi a pedido de um dos amigos que testemunhou esse suplício que farei provavelmente o relato mais sincero de toda a história do Cachorros de Bikini.

    Nove anos atrás, no ano da graça de nosso Senhor de 2007, eu tinha 16 pra 17 anos, estava concluindo o ensino médio e o fim do mundo já estava marcado pra depois do vestibular. Naquele tempo eu era um bom aluno e tirava boas notas, eu tinha tudo pra acreditar que o terceiro ano seria cheio de notas boas que nem os anos anteriores. Eu estava redondamente enganado. Apesar de passar o ano me lascando um pouco e tendo um desempenho inferior ao dos anos passados, o resultado no geral foi positivo. Eu conseguia conviver com os resultados médios ou negativos na maioria das matérias, na verdade praticamente em todas exceto uma. No terceiro ano do ensino médio eu tirei todas as notas vermelhas em redação da minha vida e isso foi pra mim uma espécie de passeio no inferno.

    Eu estava confiante que toda a experiência em redação acumulada ao longo dos anos me garantiria mais um ano tranquilo no campo da escrita curricular obrigatória, mas eu acabei dando de cara numa barreira. A barreira em questão tinha os cabelos bem curtos, os olhos claros, normalmente usava batom vermelho, atendia pelo nome de Edvânea e também era conhecida como a professora de redação, português e literatura. De longe uma das melhores professoras eu tive na vida, a mesma que nunca me deu uma nota maior que 5,0 em redação.

    Edvânea foi o adversário que eu nunca consegui superar. Eu digo adversário, não por que ela me dava 5,0 de propósito, mas por que ela me desafiava. Ela soltava os leões no coliseu e depois de me ver suar, lutar, sangrar e matar as feras, colocava o polegar pra baixo, fazia a caneta dançar sobre o fruto do meu trabalho e me entregava o simbolo incontestável da minha retumbante derrota. Vermelho, sempre em vermelho. Vermelho como sangue, vermelho do batom, vermelho da tinta da caneta, vermelho da minha nota. O mesmo vermelho que gritava pra todo mundo ouvir o tamanho da minha incompetência, que atestava a fraqueza das palavras derramadas sobre o papel. Em 2007 vermelho era a cor da minha vergonha.

    Sim, vergonha. Era isso que eu sentia sempre que recebia a nota de redação. Sempre que eu via os mesmos amigos que me reconheciam como um ótimo aluno de redação com notas muito maiores que as minhas. Lembro de forçar minha criatividade até o limite, de tentar ao máximo ousar dentro das fórmulas das redações dos vestibulares. Obviamente nada disso interessava muito, ou quem sabe eu não estivesse fazendo as coisas tão bem quanto pensava, e o resultado quase sempre era o mesmo: nota 5,0. Talvez você esteja pensando que 5,0 não é uma nota tão vermelha assim, mas vale lembrar que Edvânea nunca dava menos que 5,0… Quase nunca, já que em uma certa ocasião, beirando o desespero de conseguir uma nota decente, li errado o tema da redação, escrevi uma parada totalmente nada a ver e tirei um maravilhoso 2,5. Gosto de pensar nessa nota como o único mérito que minhas redações tiveram naquele ano, com a pior nota que foi dada nas quatro turmas de terceiro ano de 2007 no Colégio da Polícia Militar de Pernambuco.

    Quando eu paro pra pensar nesse pedaço da minha vida escolar só consigo encará-lo como um grande exercício de humildade. Foi em 2007 que toda a minha vaidade em relação ao que escrevo foi evaporada. Foi quando eu aprendi que aquilo que eu achava do meu próprio trabalho não servia pra muita coisa. Bom ou ruim é o leitor quem diz e isso me faz lembrar que na última redação que eu fiz deixei um recado. Pedi gentilmente que aquele 5,0 fosse dado com uma caneta azul, é uma pena que a última redação era uma prova final e eu nunca vi aquela “nota azul”. Lembro que na última vez em que nos vimos ela me garantiu que meu pedido foi atendido. Foi no teatro da UFPE, na colação de grau das turmas do terceiro ano e não por um acaso Edvânea usava um vestido vermelho. Vermelho como as poltronas do teatro, vermelho como a cor da tinta da caneta, vermelho como o batom, vermelho cor de 5,0.

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