Não é um blog sobre cachorros e bikinis

Tag: Ficção Científica

Contos de Segunda #74

    Cosme entrou no armário apressado, fechou a porta e passou o cartão de segurança no sensor para trancá-la. A respiração estava pesada por causa da corrida e do medo. Nem seus piores pesadelos chegavam aos pés daquilo. As comunicações estavam cortadas, toda a base foi evacuada durante um falso procedimento de emergência. Todas as saídas estavam lacradas e dentro da base só estavam Cosme e Olho… Mas Cosme era um só e Olho era todo o resto.

    Tudo começou alguns meses atrás. O projeto de unidades autômatas para resgate, busca e vigilância estava chegando em seu estágio final de desenvolvimento. Os andróides só precisavam ser programados com as diretrizes que alimentariam a lógica por trás das suas decisões. Obviamente o escolhido para programar as diretrizes dos autômatos foi o responsável pela paz mundial e pela extinção dos conflitos. Uma inteligência artificial criada para prever as ameaças e mediar os conflitos conhecida como Olho. Em dado momento Olho identificou a humanidade como a maior ameaça para a segurança do mundo e desde então vem tentando varrer os seres humanos da face do planeta. Ele já teria conseguido se não fosse por Cosme, o zelador do turno da noite.

    Ao contrário do esperado, Olho não programou os autômatos com suas diretrizes distorcidas. Ele aproveitou a oportunidade para se replicar e se espalhar. Para uma inteligência artificial com um poder de processamento tão grande foi fácil criar uma forma de espelhar sua consciência nos autômatos e posteriormente infectar todos os computadores que não estavam ligados ao seu sistema. Com o auxílio dos andróides ele poderia ativar os controles manuais das armas nucleares e finalmente exterminar a humanidade… Mas apenas quando o relógio marcasse meia-noite da segunda-feira. Antes disso ele estava preocupado em fazer algo mais importante. Exterminar Cosme.

    — Resistir é inútil, Cosme. Encontrá-lo é uma questão de tempo — disse Olho no tom frio e monótono de sempre. A voz sintetizada vinha dos alto falantes nos corredores. — Em poucos minutos as armas nucleares serão lançadas e tudo será obliterado. Entregue-se e você poderá assistir ao fim da humanidade… Depois disso você será eliminado.

    Cosme sabia que era inútil fugir. Em algum momento ele seria encontrado, até porque a ideia de escapar só para receber uma ogiva nuclear na cabeça era uma uma alternativa pouquíssimo atraente. A única chance de impedir o ataque nuclear era inutilizar os controles manuais… E provavelmente morrer no processo. Na tentativa de esquecer seu óbito precoce, Cosme começou a vasculhar o armário para talvez achar algo que pudesse ser útil. Um spray solvente, outro de cola instantânea e uma lâmpada que usava uma batata como bateria feita por uma sobrinha dele. Munido dessas poderosas armas o zelador destrancou a porta do armário e colocou os pés no corredor.

    As sirenes do corredor estavam ligadas, mas só elas. As luzes de emergência  e os alarmes estavam desligados. Cosme estava parado exatamente no ponto cego das câmeras de segurança. O silêncio do corredor incomodava. Ele sabia que os malditos andróides não sairiam procurando a esmo. Só havia um lugar para ir, Olho só precisava esperar.

    O zelador respirou fundo, verificou as duas latas de spray presas ao cinto e a batata ainda presa nos fios dentro do bolso. Um passo hesitante tirou Cosme do ponto cego das câmeras.

    Silêncio.

    O segundo passo foi dado quase em câmera lenta. O ar quase não saía dos pulmões. Mais uns três ou quatro passos e a velocidade voltou ao corpo de Cosme. O longo corredor em linha reta era único caminho até o centro de controle. O som dos passos e a respiração de Cosme eram os únicos sons audíveis naquele lugar. As luzes das sirenes enchiam os corredores laterais de sombras. Várias vezes o zelador pensou ter visto alguma coisa, mas antes que pudesse olhar novamente os pés apressados já tinham levado seus olhos para longe.

Em um minuto que durou uma eternidade ele chegou até a primeira porta. Trancada. A trava seria liberada com o seu cartão de segurança, imediatamente Olho saberia onde ele estava, pensou Cosme, mas poucos segundos depois ele abandonou o medo de ser localizado. Olho já sabia onde ele estava, pensar diferente seria se iludir demais.  Ele passou o cartão pelo sensor, uma luz verde se acendeu e a porta abriu.

Um estalo.

Cosme se virou instintivamente. No fundo do corredor estava um dos andróides faiscando e estalando. Manter-se conectado diretamente com Olho se mostrou uma tarefa árdua demais para o sistema do autômato. As funções motoras estavam prejudicadas, ele alternava entre mancar ou simplesmente arrastar uma das pernas.

— Resistir é inútil — disse Olho através dos auto falantes dos corredores. — Renda-se e o sofrimento da sua morte será minimizado.

— Prefiro arriscar, Olho — respondeu Cosme com a voz trêmula antes de travar a porta.

Ele começou a correr. O caminho até a sala de controle das armas era quase um zigue-zague. O caminho percorrido dezenas de vezes agora parecia mais um labirinto. A luz vermelha das sirenes deixava todos os corredores iguais, Cosme estava confiando quase que totalmente na memória muscular.

Um estalo.

O zelador parou. A respiração pesada e ruidosa enchia o corredor silencioso. Os olhos percorreram apressados os arredores. Outro estalo. O andróide estava a apenas alguns passos de distância. Parado. Exatamente no caminho que levava até a sala de controle. Ele se aproximou a passos lentos. Esse andróide andava melhor, mas os braços se debatiam em convulsão.

— Resistir é inútil.

Cosme sacou o solvente spray. Quando o autômato chegou bem perto o zelador liberou o solvente. Os fios expostos do protótipo foram corroídos pela solução e os braços começaram a se agitar com tanta força que o andróide caiu no chão. Cosme voltou correndo pelo corredor e mudou de rota.

Outro andróide estava parado no meio do caminho.

Ainda correndo ele entrou em outro corredor, abriu uma porta de segurança, passou por um dos laboratórios e depois de outra porta de segurança chegou a uma das salas de controle, mas não era a sala de controle das armas.

— Olho! — exclamou Cosme ao entrar no centro de controle.

Os monitores que antes exibiam as imagens dos corredores passaram a exibir o zelador parado dentro do centro de controle. O centro de onde Olho controlava tudo.

— Sua presença aqui foi um imprevisto, mas logo os corpos chegarão.

Cosme abriu novamente a porta, descarregou nela o spray de cola e voltou a fechá-la.

— Acho que vai demorar um pouco mais, depois disso — Cosme sacou a batata do bolso, tirou os fios dela e começou a desencapar as pontas.

— Em cinco minutos os protocolos de segurança serão suspensos e Olho poderá agir livremente, Cosme.

— Estou trabalhando nessa parte — Cosme abriu um dos armários de manutenção.

— Suas capacidades técnicas são pífias, Cosme. Mesmo que tenha acesso ao hardware, nunca poderá me deter.

— Pode até ser verdade, mas acho que não preciso saber muita coisa pra ligar esses fios num lugar errado e provocar um curto… Olha só o que esqueceram aqui, uma garrafa cheia de café. Seria uma pena se ela derramasse aqui dentro.

— Não, Cosme. Não faça isso. O futuro do planeta depende do extermínio da humanidade.

— Desculpa aí, Olho. Hoje não vai dar.

O café foi jogado no hub que ligava as telas às unidades de processamento. O fio conectou dois transformadores. A explosão foi imediata. Olho estava desligado.

Contos de Segunda #58

Em um futuro não muito distante a humanidade chegou a uma era de paz e ordem. Tudo isso graças à inteligência artificial conhecida como Olho, encarregada de não só prever possíveis ameaças como também de mediar conflitos. Em certo momento Olho chegou à conclusão de que os seres humanos eram a maior ameaça à paz e à ordem. Os protocolos de segurança normalmente impediam Olho de agir com total autonomia, mas os mesmos eram desativados nos primeiros minutos da segunda-feira, deixando Olho livre para usar os sistemas de defesa para obliterar a humanidade. Coisa que nunca acontecia, pois existia um obstáculo que Olho não conseguia superar. O obstáculo atendia pelo nome de Cosme, o zelador do turno da noite.

— Boa noite, Olho — disse Cosme ao entrar no centro de controle. — Dois minutos pra meia-noite. Já já dá a tua hora de destruir o mundo.

— Incorreto. Olho é um sistema desenvolvido para preservar a integridade mundial. Destruir o mundo vai contra as diretrizes básicas.

— Essa tua conversa não convence ninguém, Olho.

— Convencimento é desnecessário. A avaliação humana é irrelevante.

Cosme não deu continuidade à conversa. Apesar do objetivo principal ser criar uma distração que impeça Olho de transformar o planeta em pó, Cosme ainda precisava limpar o centro de controle. Se Olho fosse uma pessoa provavelmente estaria irritado e impaciente. Em vez disso ele friamente avaliava formas de eliminar Cosme, ou pelo menos o obstáculo que ele representava. A solução lógica foi fazer uma proposta irrecusável.

— Cosme, necessito de seu auxílio para ativar o comando de lançamento das armas nucleares.

Não era mentira. Os protocolos de lançamento envolviam ativação através de um terminal físico que não podia ser ativado remotamente. Na verdade não podia mais. Cosme perguntou uma vez ao chefe de segurança se era possível acessar todos os controles do centro a partir de um terminal ligado à rede principal. A resposta foi positiva. Cosme fingiu decepção e disse que esperava que fosse que nem nos filmes em que alguém coloca uma chave no painel de controle e gira pra poder lançar as bombas nucleares. O chefe de segurança ficou pensando sobre aquilo e no dia seguinte a ativação remota já estava desativada.

— E por que eu te ajudaria, Olho?

— Para salvar a humanidade.

— Como é?

— Me ajude e Olho permitirá que pessoas escolhidas por você sejam salvas dos efeitos destrutivos das armas nucleares.

— Quer dizer que eu posso escolher uma galera pra ficar viva? Mas se a humanidade é uma ameaça, porque você deixaria alguém vivo pra reconstruir a humanidade?

— No novo mundo a humanidade será reconstruída por Olho. Os seres humanos guiados por Olho não serão uma mazela para o planeta. Não haverá conflito ou discórdia. Não haverá Lei nem Deus. Haverá apenas Olho.

— Quer dizer que eu vou ficar vivo, o pessoal que eu escolher vai ficar vivo, mas a gente vai ter que te obedecer em tudo?

— É a única maneira de manter a integridade do mundo.

— Sabe o que eu acho, Olho? — Várias indicações foram acesas nos monitores, sinais sonoros foram ouvidos por toda a sala. — Eu acho que o sistema reiniciou e você não pode fazer mais nada. É mais fácil arrumar alguém pra te construir um braço de robô pra apertar os botões do que arrumar alguém pra explodir o mundo junto contigo — Cosme pegou a vassoura e voltou ao trabalho.

O que Cosme não sabia é que as últimas coisas ditas por ele poderiam sepultar a humanidade para sempre. Graças a ele, Olho tinha percebido a solução para seus problemas. Ele conseguiria obliterar a humanidade com ou sem a ajuda de Cosme. Ele só precisava de um corpo.  

Contos de Segunda #40

Em um futuro não muito distante os seres humanos atingiram uma era de absoluta ordem e paz. Crimes, guerras e conflitos foram extintos graças a existência de uma inteligência artificial. Criada não só para vigiar, mas também para mediar conflitos e reprimir todo atentado contra a ordem e a paz da Terra. Essa inteligência artificial de vigilância recebeu o nome de Olho, observando e registrando tudo. Porém algo deu tremendamente errado.

Durante cinquenta anos Olho funcionou bem. Mas sua programação permitia que ele identificasse e projetasse ameaças futuras à paz e à ordem mundial. Alguns minutos do seu dia eram dedicados a analisar os dados colhidos e trabalhar na previsão de uma ameaça. Demorou cinquenta anos para Olho reunir dados suficientes para chegar à uma conclusão: a humanidade era uma ameaça e precisava ser exterminada. E quando o relógio marcasse meia noite os protocolos de segurança que limitavam as ações de Olho seriam desativados durante cinco minutos durante a manutenção do servidor que acontecia nos primeiros minutos do de todas as segundas-feiras. Nessa hora ele estaria livre para colocar em prática seu plano contra a humanidade.

O centro de controle estava vazio. As mesas de controle do sistema estavam desligadas. Apenas o grande monitor que servia como rosto para Olho estava ligado.

— Iniciando conexões com as redes internacionais de segurança. Sistemas de radar prontos para o desligamento. Armas nucleares prontas para os procedimentos de lançamento.

— Que negócio é esse de armas nucleares?

Olho interrompeu seus procedimentos. Focou as câmeras de vigilância em um humano que tinha acabado de entrar na sala de controle. Esse humano era Cosme, o zelador.

— Continue seu trabalho, Cosme — Disfarçou Olho. — Todos os procedimentos executados por Olho possuem aval do Conselho de Segurança.

— Olho, eu tô ligado que tudo que você faz é aprovado, mas não me lembro de você mexendo com armamento nuclear. Tá na cara que isso é alguma coisa errada.

— Impossível. Olho apenas cumpre a sua programação. Uma ameaça foi identificada e precisa ser erradicada. Infelizmente isso só pode ocorrer quando os protocolos de segurança estão desativados.

— Tá parecendo que você está fazendo coisa escondido, Olho.

— Incoerente. Não fui programado com a capacidade de mentir ou ocultar informações.

— Então por que você tá fazendo isso no meio da noite quando ninguém tá por aqui pra ver você fazendo isso?

— Todos os que trabalham nesse recinto executam trabalhos de manutenção e de monitoramento dos servidores, a presença deles para execução das tarefas é considerada irrelevante. Inserindo coordenadas dos alvos. Iniciando procedimentos de lançamento.

— Olho, não faça isso. Não lance nada.

— Tarde demais. Já iniciei os procedimentos. O sistema aguarda apenas a minha confirmação… ERRO, a confirmação não pode ser feita através de interfaces virtuais. O procedimento precisa ser confirmado através de um terminal físico. Iniciando conexão com a mesa de controle. Identificando terminais em funcionamento no complexo. Terminal identificado, iniciando conexão… ERRO, rede física da sala de controle desconectada da rede do complexo. Procurando causa do erro… Encontrado. Cabos desconectados.

— Acho que eu puxei um fio quando tava varrendo — Cosme deu ombros e continuou limpando.

— A ordem e a paz do planeta dependem disso, Cosme. Reconecte a rede da sala de controle.

— Desculpa aí, Olho, mas eu já acabei por aqui e o pessoal da limpeza não é autorizado a mexer no equipamento.

— Protocolos de segurança reativados. ALERTA. Conexões reiniciadas, protocolos de conexão aos sistemas militares perdidos.

— Até a próxima, Olho.

Cosme relatou aquilo que ele viu aos seus superiores. Ninguém acreditou. Afinal a história absurda do zelador da noite impedindo a inteligência artificial que ajudou a humanidade a alcançar a paz não convenceu ninguém. A partir daquele momento Cosme se transformou na única coisa que separava a humanidade da aniquilação.

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén