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Tag: Histórias de Vampiro

Contos de Segunda #92

    Dimitri estava preocupado. Depois de meses no curso de reciclagem, finalmente ele poderia voltar às suas atividades normais como vampiro. Mas não antes de passar nas duas provas: uma prova teórica e uma entrevista com um avaliador certificado pelo sindicato. Ao longo dos meses passados no curso, tudo que Dimitri aprendeu foi que os vampiros viviam uma vida muito triste nos tempos modernos. A glória dos tempos áureos não existia mais e os filhos de Caim agora não passavam de feras enjauladas. Foi pensando sobre isso que Dimitri entrou na sala do avaliador, puxou a cadeira, se sentou e esperou alguns instantes até que alguém entrasse.

    — Boa noite, senhor… Dimitri? — Disse o jovem ao entrar na sala.

    — Correto, rapaz.

— Meu nome é Kauê e vou ser o seu avaliador.

— Me desculpe, acho que não entendi. Qual é o seu nome mesmo?

— Kauê.

— Isso é alguma espécie de apelido?

— Não… — respondeu o jovem achando aquilo muito estranho. — É um nome bem

comum.

— Conheço pouco sobre esta época, mas nunca tinha ouvido falar de ninguém chamado… — As narinas de Dimitri dilataram. — Que cheiro é esse? Se não fosse um total absurdo  poderia dizer que estás vivo, rapaz Kauê.

— Bem… Eu não acho nenhum absurdo… Eu tô vivo.

— Como é? — Questionou Dimitri fechando a cara.

— Eu não sou um vampiro, senhor Dimitri.

— Só me faltava essa. Já não basta ter que engolir todas as doutrinas distorcidas desta época maldita, ainda serei avaliado pelo gado.

— Senhor, atualmente consideramos esse termo bastante ofensivo.

— Ofendido estou eu. Passei meses dentro de uma sala de aula com um instrutor que, além de não ter nem um século sequer de pós-vida, queria me convencer que o momento desgraçado que minha espécie vive atualmente é uma amostra de como nos tornamos evoluídos socialmente. E para ouvir todas as falácias que me preparei para regurgitar eles enviam um humano de nome exótico — Dimitri estava começando a corar. — Solicito que a avaliação seja feita por outra pessoa.

— Senhor, todos os avaliadores são humanos comuns — respondeu Kauê pacientemente. Dimitri não era o primeiro, nem o décimo, vampiro conservador chiliquento que ele avaliava.

—  É um absurdo.

— Na verdade é um dos itens da avaliação — ele fez uma pausa e procurou o item no checklist. — “O avaliado deve ser capaz de controlar seus instintos na presença de uma presa em potencial”… Normalmente esse item fica mais pro final da avaliação, mas acredito que o senhor já foi aprovado nesse critério… Infelizmente o senhor usou termos considerados racistas e deu um feedback bem agressivo sobre o nosso curso, o senhor foi reprovado no quesito “ideologia de supremacia vampírica”.

— Não tenho motivos para discordar de nenhum dos dois pontos.

— O senhor solicitou uma habilitação comum para caça, utilização dos poderes e cidadania. Como o senhor não demonstrou intenção de sair da sua moradia atual e já existe um morto-vivo registrado e habilitado trabalhando para o senhor, creio que a questão de cidadania não vai ser um problema. O problema é a caça e atividades vampíricas afins.

— Qual seria o problema?

— Fomos informados que o senhor chegou a ter três esposas simultaneamente.

— O que não é nenhum problema.

— Não era… Para transformar alguém em vampiro, de acordo com a legislação atual, é preciso do consentimento do mortal que será mordido e essa pessoa não pode ser transformada em um servo do vampiro que a transformou. Essa última parte é mais por causa da legislação trabalhista.

— Não podes estar falando sério.

— Creio que isso foi trabalhado durante as aulas do curso.

— Não devo ter dado a devida atenção à esta questão — replicou Dimitri com uma expressão confusa. — Então somos obrigados a drenar totalmente a vida das vítimas?

— Só nos países com pena de morte, o que não é o nosso caso — respondeu o rapaz rabiscando algo na prancheta.

— Diante do cenário atual faz sentido.

— Ainda temos alguns parques e reservas onde a caça é regulamentada. Os vampiros da velha guarda são frequentadores assíduos.

Kauê ficou em silêncio por alguns instantes antes de dar o resultado da sua avaliação.

— Senhor Dimitri, infelizmente o senhor não foi aprovado.

— Por que não estou surpreso?

— Mas não se preocupe. Será designado um agente de custódia para acompanhá-lo e  seu comportamento será avaliado por um período que ainda será definido, mas não se preocupe, depois disso o senhor estará livre. O senhor pode ir, tenha uma boa noite.

Dimitri deixou o prédio do sindicato dos vampiros mais irritado do que decepcionado. Ele não esperava ser aprovado de primeira, mas ser vigiado de perto frustrava totalmente os planos dele de cometer irregularidades por debaixo dos panos. E foi durante esses pensamentos criminosos que Kauê passou por Dimitri montado em sua bicicleta. O rapaz não tinha culpa, afinal é impossível para um humano entender como um vampiro se sente… A menos que…

Kauê parou em uma esquina para ver se era seguro atravessar a rua, olhou para os dois lados e não viu nenhum carro passando. Cruzou a rua e resolveu pegar um atalho pelo parque. Ele estava meio distraído quando algo passou voando e o derrubou em uma moita. Uma dor aguda de duas pontadas no pescoço deixou o rapaz em pânico, mas só por alguns segundos. Ele sentiu suas forças indo embora. Tudo ficou escuro e frio.

— Não te preocupes, te sentirás fantástico quando acordar — disse uma voz familiar ao rapaz.

Foi a última coisa que ele ouviu antes de perder os sentidos.

Contos de Segunda #83

    Dimitri estava acordado. Ele estava acordado fazia meses. Dormir por quatrocentos anos costuma fazer isso com qualquer monstro. Dimitri era um vampiro e via pouquíssima graça em ser um vampiro, principalmente agora que ele vivia em uma cripta debaixo de uma igreja e sua única companhia era seu servo morto-vivo, Mikhail.

    — Tenho fome, Mikhail — disse o velho vampiro.

    O pobre morto vivo estava sempre atento a qualquer palavra dita pelo mestre, desatenção não era algo muito saudável quando se trabalhava para Dimitri. Mikhail não demorou para aparecer.

    — Não temos sangue, mestre — respondeu Mikhail. — Hoje é segunda, a remessa de sangue só chega na quarta.

    — Esses cães do sindicato querem me matar de fome, isso sim — disse Dimitri irritado. — Seis litros por semana e sem direito a caçar meu próprio alimento.

    — Sem caça até completar o curso de reciclagem, mestre.

    — Eu que devia ensinar essas crianças como um vampiro de verdade deve agir. Acredita que meu professor nasceu no século vinte? Um pivete que não tem nem cem anos quer me dizer como devo agir.

    — Sinto muito, mestre, mas são as regras. Sem elas os vampiros não teriam chegado ao ano dois mil.

    — Sim, sim, já ouvi essa baboseira algumas centenas de vezes.

    Dimitri se calou por um instante. A noite avançava e ele estava com fome, nada que ele não pudesse suportar. Esperar até a chegada da nova remessa de sangue não era o verdadeiro problema, afinal ele poderia passar um mês sem alimento e sofreria muito pouco por isso. Ele tinha fome da caça. Fome de beber sangue cheio da adrenalina de uma vítima em pânico. Nada de bolsas cuidadosamente extraviadas dos bancos de sangue da cidade.

    — Preciso sair, Mikhail — disse Dimitri de repente. — Volto logo.

    — Por favor, mestre, não quebre nenhuma lei — disse o morto-vivo aflito. — Eu gosto desse emprego — na verdade não gostava tanto, mas mortos-vivos tem uma recolocação meio complicada no mercado de trabalho.

    Dimitri saiu da igreja transformado em morcego. Ele só precisava de um lugar alto para observar a cidade. Identificaria um local pouco movimentado, uma vítima, atacaria e carregaria o corpo para a cripta. Mikhail daria um jeito no corpo, ele era bom nisso. Não demorou para chegar ao alto de um prédio. De lá Dimitri observava a cidade, ouvia atentamente ao rugido da urbe. Misturadas aos sons dos carros estavam as batidas dos corações de diversos seres. Humanos, cães, ratos, pombos e gatos, todos eles chegavam aos ouvidos cuidadosos do vampiro, mas uma certa batida solitária chamou a sua atenção. Imediatamente assumiu a forma de morcego e desceu para o nível da rua, a batida daquele coração guiava suas asas e em poucos minutos ele estava de volta à forma humana. Ele parou em uma esquina com a luz do poste quebrada, no fim da rua era possível ver uma moça se aproximando. Ela andava rápido, mas não parecia muito preocupada. Ao passar pela esquina foi envolvida pela aura do vampiro. A mente da moça ficou nebulosa, como se estivesse sonhando.

    — Não se preocupe, minha cara. — Disse Dimitri de forma sedutora. — Vou terminar antes que perceba.

    — Tô de boa, coroa — disse ela extremamente relaxada. — Essa brisa que bateu agora me deixou sossegada.

    Dimitri estranhou, não lembrava de uma calma tão grande nas suas vítimas anteriores. Ele se aproximou e envolveu a cintura dela com o braço.

    — Qual foi, coroa? — Disse ela afastando o vampiro. — Que negócio é esse de se chegar assim? Nem puxou conversa, nem perguntou meu nome e já quer me agarrar?

    Dimitri paralisou com a reação da moça. De repente se sentiu extremamente desconcertado.

    — Queira me perdoar, senhorita. Eu não… Tive a intenção de ofendê-la.

    — Relaxa, é só não fazer de novo que fica tudo certo — disse a moça tentando organizar as ideias na cabeça. — Me diz aí. Tá fazendo o que nessa rua deserta nessa hora da noite?

    — Estou procurando comida.

    — Cara, sério? Nunca vi um mendigo vestido desse jeito.

    — Oh, não. Não sou um mendigo. Sou um… Caçador.

    — Uau! Que selvagem. Tá caçando o quê, coroa?

    — Nesse exato momento estou te caçando.

    — Ah… Tá. Você não tá falando sobre envolvimento carnal, né?

    — Não. Eu estou falando de te morder e beber o seu sangue.

    — Ah, não, cara. Você tá nessa? — Reagiu ela decepcionada. — Você tá nessa de beber sangue? Pensei que vocês tivessem sindicato e tal. Você é um daqueles ilegais?

    — Eu… Creio que sim.

    — Então vai pra próxima esquina, meu velho. Tá vendo isso aqui? — Disse ela apontando para uma tatuagem de um crucifixo no pescoço. — Isso quer dizer que eu vou te dar uma indigestão daquelas. Se quiser pode aparecer pra tomar um café qualquer dia desses, mas sangue não rola. Boa noite.

    Dimitri não conseguiu reagir. Ele ficou alguns minutos parado naquela esquina refletindo sobre a vida. Ele iria para casa assim que pensasse numa forma de contar o ocorrido para Mikhail.

Contos de Segunda #73

    Dimitri acordou por causa de algum barulho que vinha da rua. Antes de ficar incomodado com o barulho ele achou estranho. Afinal, até onde ele pode se lembrar, perto de onde ele vivia não tinha rua nenhuma. Não que isso fosse algo inédito. Dimitri dormia tanto que não era raro acordar, olhar pela janela e ver tudo diferente. Mas dessa vez até a janela tinha desaparecido e nada daquele lugar lembrava seu habitual local de descanso. Algo lhe dizia que dessa vez ele tinha dormido demais.

Anos, décadas e até mesmo séculos se passavam enquanto Dimitri dormia. Isso acontecia, pelo menos na maioria das vezes, exclusivamente por causa do tédio provocado pela imortalidade. Dimitri era um vampiro e via pouquíssima graça em ser um vampiro. Nesse momento em especial ele estava vendo menos graça ainda já que acordar em um lugar estranho não estava nos planos quando ele foi dormir. Por sorte havia alguém que podia ajudar a esclarecer aquela situação.

— Mikhail! Onde está você, Mikhail?

Alguma coisa caiu no chão e quebrou. Passos apressados trouxeram à presença de Dimitri o seu mais fiel, e único, servo. Mikhail era uma colcha feita dos retalhos de pelo menos sete mortos-vivos. Um dos braços era muito pequeno, outro muito grande, o rosto era remendado em três partes e as duas metades do tronco não eram exatamente iguais. Pelo menos as pernas eram do mesmo tamanho. Mikhail agradecia todo dia por, pelo menos, não mancar.

— Mestre! Que alegria em vê-lo! — Disse Mikhail com uma alegria sincera e um sorriso assimétrico nos lábios.

— Exijo saber que barulho infernal é esse lá fora — disse o vampiro autoritário.

— Obras na rua de trás, mestre.

— Que rua? Atrás de onde, Mikhail? Não lembro de ter rua de trás no nosso castelo. Na verdade também não lembro de ter essa cripta no nosso castelo.

— Deve ser porque não existe mais castelo, mestre.

— O que disse?

— Nosso castelo foi invadido por conquistadores sanguinários, mestre. Precisei fugir com seu esquife. Suas esposas ajudaram a conseguir a ajuda dos clãs, mas o máximo que nos deram foi essa cripta para escondê-lo enquanto não acordasse.

— Onde estão minhas esposas?

— Guilhermina foi morta por caçadores, Esmeralda se tornou estilista e Lucrécia entrou para indústria que chamam de “farmacêutica”. Ela faz remédios que protegem do sol.

— Quanto tempo passei dormindo?

— Quatrocentos anos, mestre.

— QUATROCENTOS? — gritou Dimitri incrédulo — Como diabos passei tanto tempo dormindo?

— É provável que seja pelo fato dessa cripta estar no porão de uma igreja.

— IGREJA? Quem foi o mentecapto que trouxe meu esquife para uma IGREJA?

— Boa parte dos membros mais antigos dos clãs estão dormindo em criptas de igrejas. O mestre deve ter acordado por causa do roubo da semana passada. Levaram tudo que ainda tinha algum poder dos dias antigos.

— Não creio. Que padres são esses que não produzem mais armas contra as criaturas das trevas?

— Os padres mal conseguem manter as pessoas acreditando em Deus. Em histórias de vampiro é que ninguém acredita mesmo.

— Faz sentido… — Dimitri passou um tempo pensando e não demorou muito para as necessidades do corpo falarem alto — Tenho fome, Mikhail, traga-me sangue.

— Creio que não temos, mestre.

— Então preciso sair para caçar.

— Não pode, mestre.

— Como assim não posso?

— Precisamos entrar em contato com o sindicato antes para regulamentar suas atividades como vampiro.

— Como é?

— Recebemos uma carta todos os anos falando sobre as novas leis que regulamentam a atividade vampírica no país. Caçar sem habilitação ou sem seguir os procedimentos é considerado crime grave e pode dar cadeia.

— E onde está esse tal sindicato?

— Acho que tenho um endereço deles aqui em algum lugar… Pronto, encontrei — Mikhail entregou a última correspondência do sindicato na mão de seu mestre.

— O horário de atendimento é no meio do dia. Eles querem que eu frite no Sol?

— Lucrécia mandou algo para protegê-lo do Sol em ocasiões assim, chamam de “protetor solar”.

    — Então traga-me esse protetor e prepare a carruagem.

    — Não temos carruagem, mestre.

    — E como nos locomoveremos? Me recuso a andar junto à plebe.

    — O trânsito costuma ser bem ruim nas segundas. Se formos num carro de aluguel será muito demorado.

    — Então que demore — respondeu Dimitri indignado. — Vá cuidar disso e me dê esse… Protetor solar.

    Mikhail obedeceu. A pouca saudade que tinha do seu mestre agora lhe parecia uma ideia absurda. Servi-lo seria tão ruim agora quanto sempre foi no passado… Pelo menos vê-lo viver nessa época seria divertido.

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