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Contos de Segunda #84 – Edição de Greve

Clóvis acordou cedo. Na verdade ele mal dormiu, afinal aquele era um dia muito importante. Durante boa parte da vida, Clóvis trabalhou em um sindicato de personagens fictícios, ele era responsável pelo DAPCS, Departamento de Apoio aos Personagens dos Contos de Segunda. Tudo isso mudou quando o próprio Clóvis se tornou um personagem em um conto de segunda. Obviamente ele não aceitou bem, principalmente por ter sido removido de seu departamento de origem para o departamento que cuida dos personagens de Guerra dos Tronos. O seu descontentamento e as condições de trabalho péssimas que os personagens de segunda têm motivaram Clóvis a agir.

Depois de muito conversar ele conseguiu organizar uma paralisação. Aconteceu ontem, no Dia do Trabalhador, uma segunda-feira. Essa paralisação foi um aviso ao autor, se as reivindicações da categoria não fossem atendidas, seria deflagrada uma greve geral dos personagens. Hoje era o dia marcado para que o autor entregasse aos personagens seu parecer.

Todos estavam reunidos em um dos auditórios do sindicato. Protagonistas e coadjuvantes. Homens e mulheres de idades variadas, dois dragões, dois cachorros, um papagaio, dois robôs e uma inteligência artificial criada para mediar e prevenir conflitos. Nenhum deles parecia muito satisfeito.

— Companheiros — começou Clóvis ao microfone dando início à reunião. — Hoje o autor conhece o poder que temos. Conseguimos paralisar a publicação de novos contos, conseguimos trazer o nosso tirano para dialogar e hoje só haverá publicação porque nós permitimos. O autor está aqui para nos ouvir. Ele já conhece nossa pauta, mas ela será repassada aqui para que seja registrada na ata desta reunião. O autor se encontra presente.

Dou um suspiro antes de responder… Sim, Clóvis, estou aqui. Boa tarde, pessoal. Boa parte dos personagens não me cumprimenta de volta, aparentemente eles estão bem chateados.

— Cada ponto da nossa pauta foi definido por um personagem, ou personagens que existem dentro de um mesmo conjunto de contos — continuou Clóvis. — O microfone está aberto.

O primeiro a levantar foi Dimitri, o vampiro.

— Nós exigimos contos com finais melhores — disse ele. — Muitas ideias excelentes são transformadas em fezes por causa de finais terríveis. Quantos além de mim sofrem com isso? Demandamos uma mudança imediata no processo criativo das histórias.

Dimitri deixa o microfone me encarando. Infelizmente nem toda ideia boa vem completa, nem sempre dá pra fazer algo decente com o final. Sou vaiado por alguns quando levanto esse ponto. O silêncio só chega quando o próximo vai ao microfone, dessa vez quem chega lá é Cosme, o zelador do turno da noite.

— Alguns personagens tiveram suas histórias, entre aspas, “concluídas” e até hoje não sabem se estão mortos ou não. Eu sou um exemplo disso, terminei meu conto em um ato de heroísmo, mas não faço a menor ideia se estou morto ou não. É um absurdo, é nosso direito saber o que acontece conosco.

O zelador deixou o microfone debaixo de aplausos. Penso em falar sobre como finais abertos são mais interessantes, mas os olhares de reprovação que recebo me fazem ficar calado esperando o próximo a prestar suas queixas. Para a minha surpresa, quem pegou o microfone foi a Dama da Segunda-feira

— Exigimos o direito de saber para onde as nossas histórias estão indo — disse ela. — Outro dia eu estava atrás de um, entre aspas, “marido”. Logo depois eu fiquei grávida e do nada eu já tinha dois filhos. Me digam, companheiros, como eu vou planejar a minha vida se eu acordo de manhã sem saber se no fim do dia eu vou estar gravida, casada ou morta?

Não faz sentido vocês saberem o final da história. As decisões que vocês tomariam poderiam mudar todo o rumo das histórias. Dessa vez eu sou vaiado por praticamente todos. Por último vejo Cristina se levantar. Ela me olha como se quisesse me assassinar da forma mais sádica possível.

— Eu quero o direito de procurar emprego na cabeça de outro autor — foi só o que ela disse, gentil como uma cacetada no joelho.

Infelizmente não posso atender às reivindicações. Algumas delas dependem de habilidades que eu ainda estou desenvolvendo e outras… Outras não fazem sentido.

— Então não temos escolha — disse Clóvis retornando ao microfone. — Coloco em votação por aclamação a greve geral. Quem é favorável? — Praticamente todos os personagens levantaram a mão. — Sendo assim, a partir de hoje os personagens da série semanal Contos de Segunda, empregados no blog Cachorros de Bikini, estão de greve por tempo indeterminado.

 

Contos de Segunda #75

    Clovis estava um pouco insatisfeito com o seu trabalho. A lista de motivos era relativamente curta, mas o primeiro motivo tinha um peso bem maior que os outros. Clóvis não gostava de trabalhar atendendo pessoas e o trabalho dele exigia que ele atendesse pessoas na maior parte do tempo. Clóvis trabalhava em um sindicato de personagens fictícios. Mais especificamente em um departamento que cuidava de uma minoria que não tinha muita força política dentro da organização sindical. Clóvis trabalhava no DAPCS, Departamento de Apoio aos Personagens dos Contos de Segunda.

    O trabalho de Clóvis era bem simples, os personagens iam até o departamento, reclamavam sobre alguma coisa ruim que o autor dos contos fez com eles, Clóvis analisava a procedência da queixa, abria um processo e acompanhava o andamento desse processo dentro do sindicato. Infelizmente os personagens de segunda eram odiados por metade da diretoria do sindicato e normalmente os processos abertos pelos coitados não davam em nada. O que deixava os personagens ainda mais raivosos, raiva essa que era descarregada em Clóvis. Mas tudo aquilo estava para mudar. Hoje ele teria uma reunião com a mesa diretora do sindicato e a esperança dele era de ter uma resposta positiva em relação ao pedido de transferência.

    Na hora marcada ele estava lá, sentado na mesa da sala de reunião de frente para cinco representantes da diretoria do sindicato, dois secretários e mais três representantes de classe.

    — Clóvis, temos alguns assuntos para tratar — disse a vice-presidente do sindicato. —  Assuntos importantes. É por isso que este conselho se reuniu para debater sobre a sua situação.

    — Tem a ver com o meu pedido de transferência? — Perguntou Clóvis.

    — Não — respondeu um dos diretores.

    — Algo relacionado com o processo daquele mutante que exigiu a continuação da própria história ou daquela moça que teve um ataque de fúria e nocauteou um dos seguranças?

    — Não, Clóvis — adiantou-se um dos secretários.

    — Então é por causa do problema que tivemos com aquele dragão? O incêndio foi controlado tão rápido que eu pensei…Já sei! É por causa daquela moça que pediu pra nunca mais dividir um conto com o ex-colega de trabalho? Soube que ela está sofrendo com a pressão do público.

    — Não e não, Clóvis. A questão é um pouco mais séria e até certo ponto inédita — respondeu a vice-presidente.

    — Clóvis, precisamos mudar você de departamento — disse outro diretor. — Mas o ideal seria demiti-lo.

    — Me demitir? Mas por quê? — Questionou Clóvis assustado.

    — Clóvis, você agora é um personagem de Conto de Segunda. Não vai poder mais trabalhar no DAPCS.

    — Personagem de segunda? Eu? Como assim? Como aconteceu?

    — Creio que tem relação com alguma série especial sobre… — a vice-diretora colocou os óculos para ler melhor a folha de papel em sua mão. — “Reclamar da vida”. O autor achou que seria uma boa ideia falar sobre um personagem que cuidava das reclamações dos personagens dele. Apesar do péssimo histórico desse autor na administração dos seus personagens, o sindicato não pode agir diretamente contra ele nesse caso em específico.

    — Diante do histórico problemático dos personagens de segunda, temos receio de que você se torne tão problemático e inconveniente quanto todos eles. Por isso temos duas opções: te demitir ou te mandar para o departamento dos personagens de… — o diretor verificou os papéis antes de concluir a frase. — Guerra dos Tronos.

    Alguns dos participantes da reunião foram pegos de surpresa. O DAPGdT era um dos piores e mais problemáticos departamentos do sindicato. Eles recebiam queixas de cada uma das várias versões de cada personagem. Livro, série, histórias em quadrinhos, video games, jogos de tabuleiro ou qualquer outra mídia. Não era raro encontrar com três ou quatro Jon Snow entrando com uma ação conjunta contra os autores das suas respectivas histórias. Além claro das reclamações do público. Era provavelmente o mais perto que Clóvis poderia ter de um pesadelo.

    — E o meu pedido de transferência para o departamento de personagens de filme de ação? — Perguntou Clóvis esperançoso.

    — Ainda está em análise, Clóvis — respondeu um dos representantes. — Não temos muitas vagas lá e são muitos pedidos de transferência para analisar.

    — Alguma forma de agilizar esse processo?

    — Agora você está nas mãos do autor, Clóvis. A partir de agora é você e ele… Se você entrar com uma ação contra ele prometemos dar uma atenção especial para o seu caso, mas de toda forma você vai mudar de departamento para evitar conflitos de interesse ou qualquer tipo de influência que sua nova condição possa ter no seu trabalho.

    Na manhã seguinte Clóvis foi até sua sala e limpou sua mesa. Ainda segurando a caixa cheia das coisas da antiga mesa, ele pegou a senha de atendimento. Ele podia ter se tornado um personagem de segunda, mas não aceitaria de bom grado os desmandos do autor.

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